Ninguém é vidente, mas os marcos dessa jornada falam por si. Para usar a imagem de Caetano Veloso, trata-se de uma long way. E, sim, Lula reage com o deboche habitual quando questionado sobre a idade. “Tenho energia de 30 e tesão de 20”, costuma dizer. Pode até haver uma centelha de verdade nesse tipo de bravata, mas ela não altera os termos do desafio: Lula é um quase octogenário e, por mais que exiba resiliência, carrega no corpo os sinais do tempo.
As comparações com Joe Biden são inevitáveis, embora imprecisas. O democrata norte-americano, aos 81 anos, sucumbiu à pressão pública e partidária após um debate desastroso com Trump, e abriu mão da candidatura à reeleição. Lula, por sua vez, nunca exibiu lapsos cognitivos graves. Está mais lento? Talvez. Fala com menos clareza? É possível. Mas nada que se aproxime de um quadro de senilidade. Seus problemas de saúde, até agora, foram superados: o câncer na laringe, diagnosticado em 2011, ficou para trás em 2012. Mais recentemente, uma queda no banheiro e um hematoma intracraniano exigiram cuidados emergenciais. Em fevereiro de 2025, um check-up garantiu que tudo estava dentro da normalidade.
Ainda assim, a dúvida paira. A idade será uma variável real na equação de 2026 — e todos os partidos já se movimentam levando isso em conta. A escolha do vice-presidente, por exemplo, ganhou contornos estratégicos. Segundo um interlocutor influente do PT, o cargo hoje ocupado por Alckmin pode se tornar o mais relevante na construção da próxima aliança. Não é só uma questão de companheirismo, mas de garantia de estabilidade, caso o desgaste físico de Lula se imponha ao longo do mandato.
Mas não é só a biologia que pesa contra Lula. A conjuntura política, econômica e internacional torna o cenário ainda mais áspero. Internamente, o governo atua como minoria. A base aliada é instável, o Congresso está mais forte e menos dependente do Executivo graças ao poder das emendas impositivas, e o Centrão já percebe que ocupar ministérios não garante mais vantagens práticas — como revelou o episódio em que o União Brasil recusou a indicação de Pedro Lucas para o Ministério das Comunicações. Foi um recado claro: o balcão mudou de lugar. Não há mais garantia de que participar do governo seja bom negócio.
Pior: há setores do Congresso que já sonham abertamente com a volta da direita ao Planalto. Não necessariamente com Bolsonaro, mas com algum nome que componha com o Centrão sem as travas do lulismo. O desequilíbrio gerado pela hipertrofia do Legislativo corroeu o presidencialismo de coalizão. Lula 3 é menos potente que Lula 1 e 2. Há menos dinheiro, menos margem de manobra, menos novidades no repertório. Até entre aliados, ouvem-se críticas à falta de imaginação política.
Some-se a isso o impasse fiscal. O governo oscila entre a promessa de colocar os pobres no orçamento e o compromisso de manter a dívida pública sob controle. Os sinais vindos das pesquisas de opinião e dos círculos do poder são, no mínimo, preocupantes: há ceticismo de todos os lados. Se tiver sorte, Lula desagradará apenas a Faria Lima — e ainda assim dentro dos limites do que eles consideram “tolerável”. Mas nada impede que acabe desagradando a todos. Com o crescimento rebaixado (o Banco Mundial acaba de prever apenas 1,8% para 2025), o governo deverá dobrar a aposta nos programas de transferência de renda. Uma decisão moralmente justa, mas politicamente arriscada: pode reforçar o mal-estar entre os donos do capital sem garantir, por outro lado, uma adesão eleitoral consistente.
E como se tudo isso fosse pouco, o mundo lá fora também ameaça. A possível volta de Donald Trump à Casa Branca, com sua agenda de tarifas, perseguições e obscurantismos, impõe um novo tipo de tensão à cena internacional. O efeito prático ultrapassa o campo econômico — embora soja, aço e carne estejam sempre na pauta — e se instala no plano simbólico e civilizacional. O trumpismo, com seu viés autoritário, racista e anti-intelectual, arrasta o planeta a uma zona de sombra. E ninguém sabe como resistir a isso sem perder fôlego.
Quando olhamos o quadro em seu conjunto — Congresso hostil, elite desconfiada, mundo instável —, o favoritismo da direita parece quase natural. Se depender das elites brasileiras, o futuro será comandado por um consórcio entre o Centrão e o bolsonarismo reciclado. Isso será vendido como “modernização”, mas o nome correto talvez seja regressão.
Voltemos a Caetano, então. Os megashows recentes de Caetano, Bethânia e Gil provocaram comoção país afora. Havia, nas plateias, algo de culto e de despedida. O público, ao aplaudir, tentava deter o tempo. Não importava exatamente a performance — o que se celebrava era o passado, a própria juventude, a história compartilhada. Lula provoca um efeito semelhante. Seu carisma, seu percurso, sua imagem pública tocam algo íntimo na memória coletiva. Há uma vontade de aplaudir o passado antes que a cortina se feche de vez.
Talvez ainda haja uma turnê no ano que vem. Mas, se for essa a última, não podemos dizer que não fomos avisados.
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