A vida eterna foi democratizada



Durante séculos, uma cosmologia elaborada — e, a certo modo de ver, francamente injusta — garantiu o acesso à eternidade apenas a um punhado de pessoas: os faraós. Em tese, o sistema existia para glorificar uma única vida às custas de todas as outras. No entanto, durou. Seis dinastias, cerca de oitocentos anos. Mas, em algum ponto entre a derrocada do Antigo Império e o florescimento do Império Médio, algo na ordem simbólica egípcia sofreu uma inflexão. Entre os séculos XXI e XVII a.C., difundiu-se a ideia inquietante de que não apenas os reis tinham alma: todos tinham. E, mais ainda, todas essas almas seriam julgadas.

O critério? O coração — ou ab, no idioma local. O coração de cada um seria pesado contra uma pena. Não qualquer pena, mas o emblema da ma’at, conceito vasto demais para uma única tradução: ordem, justiça, harmonia universal. O coração pesado por más ações era aniquilado por Am-met, uma besta composta de crocodilo, leão e hipopótamo. Já o coração leve, equilibrado, era admitido num campo sereno e fértil, onde águas corriam sob o olhar complacente dos deuses.

A questão óbvia, embora raramente formulada, é: quem decidia?

Essa pergunta ganhou contornos específicos com o surgimento de Osíris como juiz do além. Deus morto e remontado, ele encarnava não apenas a promessa de vida após a morte, mas a experiência de fragmentação e recomposição — algo que, numa civilização obcecada por permanência, devia ter soado como uma revelação perturbadora. Os textos do período — os chamados “Textos dos Caixões” — passaram a mencionar um submundo, o Duat, tão ameaçador quanto familiar, e habitado por figuras como Thoth, o escriba dos deuses, e Anúbis, o guardião de cabeça de chacal. Juntos, eles compunham o tribunal que pesava destinos.

Ao contrário da rigidez das crenças anteriores, havia agora uma espécie de abertura moral: uma democratização da eternidade. O julgamento não era mais monopólio do faraó. Estava, em princípio, ao alcance de todos. A entrada no além dependia de um conjunto cada vez mais intricado de práticas funerárias, feitiços, rituais e conduta moral. Não era exatamente igualdade, mas uma burocracia sagrada acessível — mediante certo investimento.

Essas práticas culminariam no documento funerário mais conhecido da Antiguidade egípcia: o Livro dos Mortos. Lido pela primeira vez na tradução prolixa de E.A. Wallis Budge, publicada pela Penguin com aparato crítico que ameaça envelhecer o leitor antes mesmo da página 1, o livro parece conter tudo — e nada. São 192 feitiços, ou “capítulos”, inscritos em papiros, tecidos e caixões, cada qual um manual de sobrevivência pós-morte. Não havia versão única. Quem podia pagava por exemplares ilustrados e completos; os mais pobres, por um punhado de encantamentos essenciais. Como toda economia simbólica, também essa era estratificada.

A função do Livro dos Mortos não era contar uma história, mas fornecer instruções. A maioria dos capítulos começa com rubricas — pequenas notas práticas sobre como usar o feitiço em questão. Algumas são quase cômicas na sua precisão: "Se este feitiço for recitado no terceiro dia após a morte, com óleo perfumado e pão de cevada, a alma passará incólume pelas águas de fogo." Outras, tocantes: "Se o nome do morto for lembrado, ele viverá." A lógica que move o texto é acumulativa, repetitiva e de difícil leitura — especialmente para quem espera linearidade narrativa ou coerência teológica.

Mas talvez o ponto não seja esse. O Livro dos Mortos não foi feito para ser lido; foi feito para funcionar. Era uma tecnologia espiritual — um compêndio para atravessar a noite do mundo. Seus feitiços, invocações e ícones compõem uma tentativa de capturar o invisível, de administrar o medo com fórmulas.

O título original, significativamente, era outro: “Capítulos para sair à luz do dia”. Essa ideia de morte como um retorno à luz — e não um mergulho na escuridão — sugere algo radical: que a eternidade era, afinal, menos um dom dos deuses e mais uma possibilidade administrativa. Um destino, sim, mas negociável.


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