Uma Oração de Abertura e Cena de Julgamento


O Livro dos Mortos inicia-se com um hino ao deus-sol Rá. "Tu te ergues", diz o cântico, "renovas tua juventude e retornas ao lugar onde estavas ontem. Ó juventude divina, nascida de si mesma, és indescritível. Tu vens coroado com teus diademas e fazes resplandecer céu e terra com os raios de tua pura luz esmeralda."

Rá, o deus solar, é o guardião da ordem sagrada de ma'at. Ele fertiliza o mundo com a jornada magnífica e incessante que realiza a cada dia.

A seguir, o texto entoa um hino a Osíris. Nele, um suplicante roga para descer ao mundo inferior e, então, renascer sob as bênçãos da grande divindade.

Já nas primeiras páginas do Livro dos Mortos — antes mesmo do início de seu primeiro capítulo — depara-se o leitor com uma cena arquetípica: o julgamento da alma.

Nesta cena, um humilde escriba suplica por justiça diante do tribunal dos deuses. Conduzido à presença das divindades, ele se vê cercado por figuras sagradas: Hator, Hórus, Ísis, Néftis, Nut, Tot, Anúbis — e outros seres celestes — que se voltam em silêncio solene para contemplar o mortal ofegante.

Com mãos estendidas e dedos trêmulos, o escriba encara a imponente figura de Anúbis, o deus de cabeça de chacal, que pesa o coração do homem na balança da verdade. Sua aparência evoca o poder de decidir entre a decomposição e a eternidade.

Mas não é a presença de Anúbis que mais aterroriza o escriba.

Atrás dele está Tot — o Grande Deus —, com a cabeça de íbis e um cocar majestoso que simboliza sua autoridade suprema, capaz de julgar até mesmo o curso das estações. Ainda assim, nem Tot provoca o maior tremor no coração do homem.

Na escuridão da câmara, além de Tot, aguarda uma criatura sombria: Am-met, o Devorador dos Mortos. Com cabeça de crocodilo, tronco de leão e flancos de hipopótamo, a besta lambe os beiços, impaciente, à espera do veredito de Tot.

Anúbis pesa o coração. Tot o observa longamente, enquanto Am-met arreganha os dentes e aguça o apetite.

Finalmente, Tot pronuncia-se:

"Nenhuma maldade foi encontrada neste homem. Ele não desperdiçou as oferendas dos templos, não causou dano com seus atos, nem proferiu falsas palavras enquanto viveu sobre a terra."
Os deuses então proclamam seu juízo final:

"Ele não pecou. Não cometeu ofensas contra nós. Am-met não prevalecerá sobre ele. Que lhe sejam concedidas as oferendas de carne, o ingresso à presença de Osíris e uma morada eterna em Sekhet-Hetepet."
O destino do escriba está selado. Ele não será devorado.
Em vez disso, unir-se-á aos deuses, para viver uma eternidade de bem-aventurança na vida após a morte.

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