Não poderia ser mais revelador: o papagaio — símbolo involuntário do Brasil, ave de cores vívidas e fala fácil — conquista hoje uma nova forma de existência digital, invadindo não mais as florestas, mas as telas de bilhões de aparelhos. Substituída a pressa náutica de séculos atrás pelas correntes eletrônicas, a repetição que outrora encantava Reis e Gálioneos conquistadores agora se converte em trend no TikTok. A ave, tão domesticável e contente em imitar, fez school no século XVI; no século XXI vive sua apoteose na dança uniforme de milhões que reproduzem o mesmo gesto, a mesma música, o mesmo riso padronizado.
O papagaio histórico — aquele que Cabral trouxe, talvez africano, para impressionar os índios e logo foi ofuscado pelo festival colorido de nossas araras — já representava a inclinação brasileira ao espelho: falar sem pensar, repetir sem compreender. Hoje, esse instinto alcança sua forma máxima quando o algoritmo do TikTok determina a pauta do dia: descubra a coreografia, sincronize o lábio, encene o meme. Não é mais suficiente ser você; é preciso imitar com precisão o que a plataforma reconhece como “viral”. Se você vacila, não participa da orquestra, cai no esquecimento digital — até que um novo papagaio entre em cena.
Tal como aqueles cronistas do século XVI mediam o valor de um papagaio em ducados, nossos influenciadores mensuram sua relevância em seguidores e curtidas. Cada trend é um “preço de mercado” para a atenção. Não raramente, videoclipes de quinze segundos reproduzem mantras superficiais: o “renascimento pessoal”, o “poder do agora”, o “desafio do café gelado”. Mas debaixo dessas encenações festivas esconde-se o mesmo espírito de domesticidade: o desejo — ou melhor, a urgência — de garantir quinze minutos de fama antes que o relógio do algoritmo avance para a próxima febre. E, como o papagaio falante, o usuário repete, repete, repete.
John Locke, ao citar o papagaio de Nassau, extraía dele não só uma anedota curiosa, mas uma lição sobre identidade: “Se o corpo fala como homem, por que não chamar homem o que não o é?” No TikTok, contudo, não nos confundimos: sabemos bem que a pessoa por trás da câmera não é só o eu autêntico, mas um ser híbrido, meio humano, meio bot. É preciso “dar play” no filtro certo, usar a música de sucesso, inserir a hashtag adequada — e o milagre acontece: somos visíveis. Somos, por alguns segundos, protagonistas de um espetáculo global, admitidos na corte dos que brilham.
Mas há um custo: como o papagaio doméstico, perdemos a autonomia do canto. A cultura que emergia de nossos matizes e cantos próprios dá lugar ao fast-food emocional. Uma sequência de trends nunca revisitadas — Heinz ketchup, dança do ponto eletrônico, voz de desenho animado, queda em câmera lenta. A repetição nos anestesia. Dançamos todos a mesma coreografia, falamos todos as mesmas palavras, somos todos papagaios programados para reproduzir o verniz efêmero do sucesso.
Eis, pois, a nova “Terra Papagalli”: o Brasil digital, reduto de reposts e remixes, onde a autenticidade foi metamorfoseada em métricas. O papagaio ancestral tornou-se o influenciador moderno, e o TikTok, seu viveiro infinito. Ainda assim, a salvação talvez resida no silêncio: aprender a calar o papagaio interior para que, enfim, o pensamento original possa emergir. Sem trends, sem likes, sem aplauso artificial. Talvez seja por aí, e só por aí, que possamos reencontrar algo que não seja uma mera imitação.
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