Quando eu era menino, os trabalhos da escola vinham com cheiro de papel almaço, corretivo e dicionário aberto. A gente decorava frases, recortava figuras de revistas, e quando alguém dizia “cita a fonte”, era o nome da professora da turma do ano passado. Hoje, pelo visto, é só digitar meia pergunta que a resposta vem limpa, completa, sem suor. Como se pensar fosse apenas produzir um texto com vírgulas certas.
A minha tentação é achar que tudo isso é o fim. Mas fim do quê? Da escola como a conhecíamos? Da escrita como lugar de pensamento? Ou é só o fim de mais uma ilusão — de que pensar era uma coisa que se aprendia com caneta na mão e barriga doendo de frio antes da prova?
Neil Postman dizia que toda tecnologia é uma troca. Ela entrega algo, mas tira outra coisa em silêncio. E talvez seja isso o que mais me angustia: sei o que estamos perdendo, mas ainda não sei o que estamos ganhando. Perdemos o tempo da hesitação, o tropeço da frase mal feita, o prazer de encontrar a palavra certa depois de dez erradas. Perdemos, talvez, o silêncio — que é o que a alma usa pra escutar.
Às vezes acho que o estudante de hoje não quer enganar ninguém. Só está cansado. Cansado como um adulto de vinte anos, cheio de pressa e de metas e de janelas abertas no navegador. O mundo pede tudo e oferece tão pouco tempo para sentir alguma coisa de verdade.
E aí lembro do Fedro, aquele diálogo bonito de Platão, onde o deus Toth oferece a escrita aos homens e o rei Thamus recusa. Diz que ela não vai trazer memória, mas a aparência da memória. Um saber de mentira, que mora no papel, mas não mora dentro. Um saber que se consulta, mas não se carrega. Me parece muito com o que está acontecendo agora.
A inteligência artificial escreve melhor do que muita gente. E escreve mais rápido do que todo mundo. Mas escrever, no fundo, nunca foi só sobre juntar palavras. Sempre teve mais a ver com abrir feridas devagar, com descrever o que a gente ainda nem entendeu, com guardar no texto o que não coube no gesto.
Tem dias que me pego lembrando de como era copiar poema de música num caderno e depois mostrar pra alguém — esperando que a letra dissesse aquilo que a gente não sabia dizer. “Se fiquei esperando meu amor passar”, escrevia Renato Manfredini (o Russo). A identificação na dor era imediata, ao menos na juventude.
Hoje, ninguém mais precisa copiar. Ninguém mais espera. É tudo pronto, limpo, e muito, muito rápido. Mas a velocidade tem esse defeito terrível: ela tira da gente a chance de sentir. Porque sentir, como qualquer um que já chorou ouvindo um disco do Belchior sabe, exige tempo.
A inteligência artificial é boa em dar respostas. Mas a vida nunca foi muito feita de respostas, foi? Ela é mais feita de perguntas que não têm onde morar. De silêncios longos entre um amor e outro. De frases que não terminam. De noites que parecem repetições e, mesmo assim, doem de um jeito diferente.
Por isso, quando vejo os estudantes escrevendo com máquina, penso: sim, talvez estejam mesmo aprendendo outro jeito de aprender. Mas será que ainda vão lembrar o que é escrever uma frase que nasceu da dor? Ou um parágrafo que saiu depois de uma noite sem dormir?
Talvez a pergunta de agora seja essa: as máquinas escrevem. Mas quem sente?
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