As máquinas escrevem, mas quem sente?


Outro dia, depois de comer um pão com manteiga que lembrou, sem explicação nenhuma, os lanches da merenda na escola da Avenida Getúlo Vargas, li uma matéria da New York Magazine. Dizia que os estudantes americanos — todos eles, sem exagero — agora usam inteligência artificial para fazer os trabalhos da faculdade. Trabalhos inteiros. Em todas as áreas. Em todos os lugares.

Abandonei o celular e fiquei olhando para o teto como quem espera que uma ideia caia de lá. Pensei: “então foi isso”. Mas o “isso” não se explica. É só um sentimento estranho de que o tempo andou demais e a gente ficou no mesmo lugar.

Quando eu era menino, os trabalhos da escola vinham com cheiro de papel almaço, corretivo e dicionário aberto. A gente decorava frases, recortava figuras de revistas, e quando alguém dizia “cita a fonte”, era o nome da professora da turma do ano passado. Hoje, pelo visto, é só digitar meia pergunta que a resposta vem limpa, completa, sem suor. Como se pensar fosse apenas produzir um texto com vírgulas certas.

A minha tentação é achar que tudo isso é o fim. Mas fim do quê? Da escola como a conhecíamos? Da escrita como lugar de pensamento? Ou é só o fim de mais uma ilusão — de que pensar era uma coisa que se aprendia com caneta na mão e barriga doendo de frio antes da prova?

Neil Postman dizia que toda tecnologia é uma troca. Ela entrega algo, mas tira outra coisa em silêncio. E talvez seja isso o que mais me angustia: sei o que estamos perdendo, mas ainda não sei o que estamos ganhando. Perdemos o tempo da hesitação, o tropeço da frase mal feita, o prazer de encontrar a palavra certa depois de dez erradas. Perdemos, talvez, o silêncio — que é o que a alma usa pra escutar.

Às vezes acho que o estudante de hoje não quer enganar ninguém. Só está cansado. Cansado como um adulto de vinte anos, cheio de pressa e de metas e de janelas abertas no navegador. O mundo pede tudo e oferece tão pouco tempo para sentir alguma coisa de verdade.

E aí lembro do Fedro, aquele diálogo bonito de Platão, onde o deus Toth oferece a escrita aos homens e o rei Thamus recusa. Diz que ela não vai trazer memória, mas a aparência da memória. Um saber de mentira, que mora no papel, mas não mora dentro. Um saber que se consulta, mas não se carrega. Me parece muito com o que está acontecendo agora.

A inteligência artificial escreve melhor do que muita gente. E escreve mais rápido do que todo mundo. Mas escrever, no fundo, nunca foi só sobre juntar palavras. Sempre teve mais a ver com abrir feridas devagar, com descrever o que a gente ainda nem entendeu, com guardar no texto o que não coube no gesto.

Tem dias que me pego lembrando de como era copiar poema de música num caderno e depois mostrar pra alguém — esperando que a letra dissesse aquilo que a gente não sabia dizer. “Se fiquei esperando meu amor passar”, escrevia Renato Manfredini (o Russo). A identificação na dor era imediata, ao menos na juventude.

Hoje, ninguém mais precisa copiar. Ninguém mais espera. É tudo pronto, limpo, e muito, muito rápido. Mas a velocidade tem esse defeito terrível: ela tira da gente a chance de sentir. Porque sentir, como qualquer um que já chorou ouvindo um disco do Belchior sabe, exige tempo.

A inteligência artificial é boa em dar respostas. Mas a vida nunca foi muito feita de respostas, foi? Ela é mais feita de perguntas que não têm onde morar. De silêncios longos entre um amor e outro. De frases que não terminam. De noites que parecem repetições e, mesmo assim, doem de um jeito diferente.

Por isso, quando vejo os estudantes escrevendo com máquina, penso: sim, talvez estejam mesmo aprendendo outro jeito de aprender. Mas será que ainda vão lembrar o que é escrever uma frase que nasceu da dor? Ou um parágrafo que saiu depois de uma noite sem dormir?

Talvez a pergunta de agora seja essa: as máquinas escrevem. Mas quem sente?

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