O autor sem rosto e a cultura do esvaziamento



Uketsu — esse nome que soa mais como um sussurro do que uma assinatura — tornou-se um dos autores mais vendidos do Japão e, agora, do mundo. Escreve histórias sobre casas que escondem traumas, corpos enterrados na memória familiar, e rostos invisíveis em janelas à noite. Ele próprio também não mostra o rosto. Nunca o fez. Aparece mascarado em raras entrevistas, mantém sua identidade fora de qualquer radar público e diz que deseja manter a liberdade de viver como uma “pessoa normal”.

A frase é reveladora: a “pessoa normal”, hoje, é justamente a que se ausenta. A que não se compromete, não assume risco, não diz quem é. Uketsu não se expõe — e talvez por isso mesmo tenha sido elevado a uma espécie de santo padroeiro da literatura sensível. Seus livros são, por definição, confessionais. A figura por trás deles, tudo menos isso.

Para muitos, essa ocultação é um gesto nobre, quase ético. Para outros, uma jogada de marketing engenhosa. Talvez seja ambas as coisas. Mas o que chama atenção não é a decisão em si, e sim o entusiasmo coletivo por ela. A reverência ao autor mascarado revela mais sobre o espírito do tempo do que sobre qualquer livro que ele possa ter escrito.

Vivemos em uma era em que o conteúdo perde densidade e a forma, ao contrário, ganha peso simbólico. A máscara de Uketsu — literal e figurativa — virou seu principal signo de autenticidade. Não importa o que ele diz, mas o fato de que ninguém sabe quem diz. Como em tantos outros fenômenos culturais recentes, a ausência virou presença. A negação virou identidade. O não-dito virou autoridade.

Olavo de Carvalho talvez diria que isso tudo é sintoma de uma cultura em colapso ontológico — onde o ser já não importa, só o parecer. A literatura, nesse cenário, se transforma em decoração emocional. Os leitores não buscam mais verdades incômodas, mas experiências reconfortantes. Uketsu oferece exatamente isso: um mistério cuidadosamente moldado, uma dor que nunca se compromete a ser inteiramente sua.

Mas essa recusa em ser alguém — ao menos publicamente — é também um conforto para o leitor. Uketsu é uma tela em branco. Podemos projetar nele o gênio, o sobrevivente, o sábio silencioso. Ele não nos contradiz. Não nos confronta. Não nos obriga a lidar com o fato de que toda escrita carrega responsabilidade — não apenas estética, mas moral.

Talvez não seja coincidência que esse fenômeno venha do Japão, onde o culto à forma e à contenção atinge alturas quase teológicas. Mas a febre ocidental por Uketsu sugere algo mais profundo — ou mais raso, dependendo do ponto de vista. Uma cultura que substitui autores por fantasmas é, no fundo, uma cultura que renunciou à busca pela verdade.

No fim das contas, talvez Uketsu seja menos um autor e mais um sintoma: da literatura como performance, da identidade como produto, da comunicação como negação. Um sucesso editorial que brilha mais pelo que não se pode ver do que pelo que se pode entender. E nesse brilho opaco, mascarado, seguimos lendo — ou melhor, projetando.

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