Ler no Calor, Pensar no Brasil


Ler em Ipiaú durante o verão é um teste para o espírito, um verdadeiro ritual de purificação pelo fogo. O calor não é apenas físico — é uma presença metafísica, uma opressão que emana das paredes, do chão, do próprio ar saturado de entropia tropical. Nessas condições, virar páginas se torna ato de fé. A mente, que deveria se elevar ao logos, se dissipa em busca de sombra e ventilador. Por isso, só leio nas frestas do dia: antes que o sol me derrube ou depois que ele se recolhe, derrotado, atrás dos morros.

João Ubaldo, que sabia das coisas, uma vez comentou a dificuldade de manter a vida do espírito sob temperaturas equatoriais. Não encontrei a citação — e nem preciso. Quem já tentou pensar com seriedade no meio do derretimento sabe do que estou falando. O calor não apenas nos embrutece: ele dissolve a interioridade, substitui a meditação pela inércia sensorial. O pensamento, nesse ambiente, é um ato de insurgência.

Poucos sabem o que é uma geração. Confundem-na com um agrupamento de pessoas nascidas no mesmo intervalo de calendário escolar. Acham que pertencer à “geração dos anos 80” é uma espécie de playlist emocional compartilhada — como se memória fosse um álbum de figurinhas ou um repositório de cenas icônicas da TV Globo.

Vejam o que nos legaram: um presidente que fazia cooper, gel no cabelo, e saía de helicóptero da vergonha nacional. Era o retrato do Brasil do marketing, o Brasil de outdoor, despolitizado pela estética do executivo bem-sucedido. E quando o castelo ruiu, um outro, com topete e moça sem calcinha ao lado, ocupou o trono vazio. O país que saíra da ditadura aos trancos e barrancos entrou de cabeça em sua mais genuína vocação: a paródia institucional.

Nessa babel de símbolos decadentes, o povo — esse termo que já foi trágico, já foi heróico, já foi poético — transformou-se em audiência. Crianças com cocar de cartolina no “Dia do Índio”, apresentadas à dor do genocídio indígena entre uma aula de educação moral e cívica e uma prova de ciências. Pintamos o rosto em sala de aula e assistimos, anos depois, ao rosto de uma indígena falando como estadista na ONU. A pedagogia nacional é a do contraste: entre a farsa e o horror, entre a encenação escolar e a tragédia da realidade. Somos um povo educado no escárnio.

E as vozes — que panorama sonoro! A voz da Xuxa, a da Vera Verão, a de Lula e de Bolsonaro, o grito de Mano Brown, o uivo de Cássia Eller. Vozes que nos formaram mais que qualquer escola. Não é exagero: a televisão foi nossa igreja, nossa tribuna e nossa penitência. O sujeito que cresceu no Brasil entre 1979 e 2024 foi menos um cidadão e mais um telespectador com pretensões cívicas.

Agora, alguém me explique: o que é uma democracia fundada na amnésia seletiva e na retórica vazia? A Constituição de 1988 foi apresentada como um epílogo glorioso. Ulysses, com voz rouca de cigarro e frases de orador romano, proclamava a vitória da “luz de lamparina na noite dos desgraçados”. Mas o que se escreveu ali não foi um contrato social, foi um auto de esperança ilusória — um documento generoso demais para um país que não quis punir seus algozes nem lembrar seus mártires. Democracia sem memória é teatro de bonecos: todos se movem, nenhum fala com verdade.

Ficou, então, esse sentimento grotesco de que herdamos algo de segunda mão. Democracia, sim — mas de brechó, puída, já usada por um parente bêbado que a estragou antes de nos entregar. E, no entanto, fingimos que ela nos serve. Passamos a vida puxando a bainha, ajustando o colarinho, tentando dar ares de dignidade àquilo que foi, desde o início, uma fantasia política de ocasião.

Fazemos parte de uma geração que viu promessas virarem assombros. Nascemos quando o socialismo ruía sob os escombros de Berlim e quando Reagan e Thatcher escreviam, com tintas douradas, o epitáfio do bem comum. De lá pra cá, o Brasil foi se tornando uma caricatura periférica dessa nova ordem. Aqui, o neoliberalismo não chegou como teoria, mas como saque autorizado. O “povo” que a Constituição pretendia elevar virou um estorvo a ser administrado a custo mínimo.

O que dizer de um país onde a política começa com greves e termina em reality show? Onde a juventude que pintava o rosto por justiça hoje pinta o rosto para o TikTok? Onde o “nunca antes na história deste país” virou bordão para cada nova tragédia institucional?

Há quem chame isso de amadurecimento democrático. Eu chamo de falência civilizatória. E como Dante, no meio do caminho da vida, cercado de camaradas que têm hoje 40 anos e olham para trás com mais espanto do que nostalgia, percebo que nossas memórias já são ruínas. São ossos jogados no chão de uma casa que nunca chegou a ser construída. Uma geração que não sabe se é órfã ou bastarda de uma promessa não cumprida.

Não é pessimismo, é diagnóstico.

E se ainda resta algo a dizer, é que talvez, só talvez, o Brasil ainda precise passar por uma infância verdadeira — daquelas em que se chora, se apanha e se aprende — antes de fingir que é adulto no concerto das nações. Até lá, continuaremos sendo os filhos da TV, das promessas murchas, e da democracia que começa com um pacto de silêncio.


José Fagner Alves Santos

2 comentários

  1. Um texto que reluz um diagnóstico das observações reais!

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  2. Texto potente, necessário e reflexivo. A metáfora do calor absurdo da Bahia elucidando como é difícil pensar o Brasil hoje. Fiquei muito pensativo. Esta leitura nos provoca e permite possibilidades de interpretar e reinterpretar historicidade e contemporaneidade.

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