Repensar nós mesmos


Se há algo que as fotografias etnográficas do projeto de Kahn e seus contemporâneos deixam claro, é que o século XX nasce sob o signo da imagem como poder. Não apenas como memória ou registro, mas como autoridade. Uma autoridade que não precisa gritar: basta mostrar. Mostrar o índio parado, sem contexto, com olhar melancólico ou ausente. Mostrar o negro em trajes exóticos, com um sorriso congelado que não diz nada. Mostrar o camponês como pitoresco, o “oriental” como enigmático, o outro como o sempre observável. Mostrar para apagar.

E se hoje olhamos para essas imagens com certo fascínio ou nostalgia, é porque ainda não rompemos totalmente com aquele regime de olhar. Ainda carregamos, nos olhos e nas lentes, as mesmas estruturas que classificam, hierarquizam, infantilizam. O “bom selvagem” se reciclou em “ícone da diversidade”, o exótico virou “riqueza cultural”, e seguimos, sem vergonha alguma, colhendo imagens como quem colhe espólios. Continuamos viajando com nossas câmeras – agora digitais – e tirando fotos de povos que não conhecemos, para postar em redes que nada entendem, alimentando uma máquina que se disfarça de cosmopolitismo, mas que ainda fede ao velho armário colonial.

É por isso que a crítica da fotografia etnográfica deve ser radical. Não basta dizer que ela teve “méritos documentais”. Isso é pouco. Isso é covarde. Porque, convenhamos, não há documento que não seja também monumento – e esses monumentos foram erguidos sobre os escombros da fala dos outros. E o que fazemos com monumentos? Alguns preservamos, outros derrubamos, mas todos precisamos problematizar. Sempre.

O gesto político mais honesto, talvez, seja o de devolver complexidade a essas imagens. Rasgar o verniz estético que as encobre. Interromper a contemplação passiva. Inserir legenda onde antes havia silêncio. Recontar as histórias que elas esconderam – não com palavras doces, mas com a aspereza da verdade. Deixar que os fotografados falem, mesmo que tardiamente, mesmo que através de nós. E, sobretudo, olhar com desconfiança para cada nova tentativa de repetir aquele gesto de captura, ainda que em nome da arte, do jornalismo ou da ciência.

Porque se há algo que a fotografia etnográfica nos ensina – e ensina com brutalidade – é que o olhar nunca é neutro. E que toda vez que miramos o outro como objeto, como tema, como diferença a ser arquivada, estamos repetindo um pacto obscuro. Um pacto que talvez seja o verdadeiro legado do Iluminismo: a ilusão de que ver é compreender, de que mostrar é respeitar, de que colecionar é preservar.

Contra essa ilusão, resta-nos a tarefa ingrata – mas urgente – de desver. De desfazer os enquadramentos. De devolver movimento ao que foi fixado. De recusar o museu da humanidade como modelo de relação com o mundo. E, quem sabe assim, abrir espaço para um outro tipo de imagem: não aquela que captura o outro, mas aquela que nos obriga a repensar a nós mesmos.

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