O analfabetismo funcional como estratégia de poder


Na semana passada, enquanto os profetas do progresso digital celebravam as novas maravilhas da inteligência artificial e da “inclusão”, a Pesquisa Inaf trouxe à tona um dado que deveria causar calafrios em qualquer alma minimamente afeita à razão: 65% da população brasileira entre 15 e 64 anos é, em graus variados, analfabeta funcional. Não se trata de uma simples carência educacional. Trata-se da castração deliberada da consciência.

Vinte e nove por cento desses brasileiros não conseguem entender o que leem — e, por “ler”, entenda-se decifrar uma placa de trânsito ou o letreiro do ônibus. Os demais 36% até arranham frases, mas tropeçam diante de qualquer estrutura lógica um pouco mais sofisticada. Ou seja: são incapazes de penetrar um texto literário, compreender uma ironia, seguir um raciocínio filosófico ou sequer perceber uma manipulação discursiva. Resultado: tornam-se massa de manobra — dóceis, crédulos, eufóricos com frases de efeito e “lacrações” de TikTok.

Ora, como esperar que essa multidão se deleite com A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, ou compreenda os abismos silenciosos de um Jon Fosse, se lhes foi negado o instrumento essencial da inteligência — a leitura compreensiva? Não é de se espantar que as listas de best-sellers estejam coalhadas de “livros” de autoajuda esotérica, colorir mandalas e “manifestar abundância”. O mercado editorial, transformado em parque de diversões para adultos emocionalmente retardados, atende fielmente ao que se tornou o perfil médio do leitor brasileiro: alguém que mal consegue distinguir um argumento de um slogan.

E enquanto isso, o Estado — sempre o Estado — segue emperrado, adiando há três anos a entrega de livros literários às escolas públicas. Um crime contra a infância, contra a memória nacional e contra o futuro. Editoras que dependem dessas compras se veem estranguladas, numa lenta e silenciosa eutanásia cultural.

Em carta aberta, editores ainda tentam preservar um mínimo de dignidade intelectual, dizendo que não basta incentivar a leitura — é preciso saber o que se lê, como se lê, para que se lê. Sim, perfeito. Mas isso pressupõe algo que esta civilização moribunda já não ousa sequer mencionar: formação intelectual. E isso exige hierarquia, autoridade, disciplina — tudo aquilo que a pedagogia igualitária e emburrecedora destruiu nas últimas décadas.

Não se trata apenas de distribuir livros. Trata-se de reconstruir o espírito. Isso só acontecerá quando se compreender que um povo incapaz de ler é um povo incapaz de pensar. E um povo incapaz de pensar é a matéria-prima ideal para tiranos, tecnocratas e falsos messias.

Portanto, a questão é clara: ou restauramos a educação como instrumento de elevação moral e intelectual, ou afundamos de vez na mediocridade de um analfabetismo funcional travestido de democracia.

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