O Brasileiro que Quis Ser Papa — e Quase Foi: O Caso Bottacin


Vivemos em tempos tão moralmente encolhidos, tão afetivamente achatados, que a simples evocação de um personagem como Roberto Bottacin causa espanto. Não porque tenha sido presidente, astro da televisão ou militante ungido por alguma ONG europeia — nada disso. Bottacin, ao contrário, encarnava aquele tipo raríssimo de espírito que, a um só tempo, escarnece do poder e postula sua estrutura: o bufão que constrange os príncipes.

Em 6 de agosto de 1978, morria Giovanni Battista Montini, mais conhecido como Paulo VI — o papa do aggiornamento tardio, da abertura sem critério, da Igreja que começou a se olhar no espelho e esqueceu de mirar o céu. Poucos dias depois, enquanto os cardeais pranteavam em silêncio estratégico e o mundo católico se preparava para o espetáculo litúrgico do funeral, um brasileiro — sim, um brasileiro — anunciava à imprensa que seria candidato à sucessão papal. À primeira vista, uma piada. À segunda, uma provocação. À terceira, um gesto de inteligência política rara, num tempo em que o humor era um instrumento de alta cultura e não apenas o tapa de stand-up com fundo de TikTok.

Antes de se envergar pela cátedra de São Pedro — ou pelo menos pelo desejo audaz de ocupá-la — Bottacin já era um personagem de múltiplas dimensões. Nascido em Ribeirão Pires, município cuja principal relevância histórica talvez tenha sido... Bottacin, o sujeito viveu a sua vida com uma intensidade cênica. Foi goleiro, contador, escritor, agitador cultural e — nos moldes que fariam inveja aos cínicos gregos — um gozador inveterado.

Jogou pelo Juventus da Mooca. E jogar no Juventus é, por si, um gesto de resistência romântica. Era o tempo dos clubes com alma, não das sociedades anônimas com camiseta. Enfrentou Oberdan Cattani, não no campo da bajulação, mas no da disputa honesta por uma vaga no gol. O fato de ter dividido posição com um ídolo da era de ouro do futebol já diz muito sobre sua competência atlética. Mas o futebol, como tudo em sua vida, foi apenas uma estação no trem sem rota certa que ele pilotava.

Largou os campos para abraçar os livros. Escreveu mais de dez. E entre todos os temas, um saltava aos olhos: o nazismo. Mas Bottacin não era um panfletário. Seu interesse pelos rastros do Terceiro Reich na América Latina antecede em décadas as reportagens de tevê e os documentários de algoritmo. Foi, a seu modo, um pioneiro da investigação histórica em tempos onde o senso comum ainda achava que Hitler morrera como queria a versão oficial. A ironia é que, num país onde os professores universitários precisam da chancela da banca para dizer o óbvio, Bottacin fez o impensável: escreveu, publicou e foi lido.

Mas não paremos por aí. Seu lado político não se manifestava nos corredores das faculdades, mas nas galerias da câmara municipal. Era presença constante, perturbadora, lúcida. Candidatou-se a vereador, vice-prefeito e prefeito. Perdeu em todas. E ainda assim, era o nome que mais se ouvia nas ruas da cidade. Porque, para Bottacin, a política não era um mandato: era uma missão, uma performance, uma crítica viva à burocracia e ao clientelismo. Que outro homem teria a audácia de, nos anos 1960, aposentar uma mula — literalmente? Mula Menina, como era chamada, puxava o lixo da cidade. Exausta, maltratada, símbolo da precariedade e do absurdo. Bottacin a aposentou. Conseguiu para um quadrúpede o que milhões de brasileiros não conseguiam para si: dignidade no fim da vida útil. E ainda arrancou da câmara um título honorífico para o animal. Um gesto cômico e, ao mesmo tempo, profundamente revelador da miséria institucional do país.

E então veio o episódio do papado.

Dois dias após a morte de Paulo VI, Bottacin leu o Direito Canônico e fez o que só mentes ousadas fazem: levou o texto a sério. Sim, é possível um leigo ser eleito Papa. Sim, basta ser batizado, crismado, solteiro e do sexo masculino. Ele preenchia os requisitos. Juntou os documentos, notificou a cúria, falou com a imprensa. A Folha de S.Paulo lhe dedicou uma página. A BBC lhe deu voz. E os bem-pensantes ficaram horrorizados. Como ousava um brasileiro — e ainda por cima de Ribeirão Pires! — disputar um trono reservado à sacralidade palaciana dos europeus? Mas Bottacin não ligava. Propôs, inclusive, reformas: eleições diretas para o papado, separação entre o poder espiritual e o administrativo, cadeira com direito a voto na ONU para o Vaticano. Hoje, seriam pautas progressistas. Na época, pareceram heresia.

Quando o conclave elegeu João Paulo I, e este morreu em apenas 33 dias, o mundo falou em mistério, conspiração, segredo. Bottacin falou em cassação. Afirmou que poderia impugnar a eleição do novo pontífice por irregularidades legais. Fez isso sério, com base jurídica, como quem não apenas zombava, mas questionava as estruturas. E é isso que define Bottacin: o sujeito que usava o escracho para lançar luz. O palhaço de chapelão que conhecia a Constituição melhor que os ministros da época.

Depois, silenciou-se do noticiário, mas não da vida. Permaneceu nos eventos, nas praças, nos encontros culturais da cidade. Morreu em 2002, vítima de derrame cerebral. Deixou filhas, amigos e um plenário com seu nome. A homenagem é justa. Mas talvez, para uma figura como Bottacin, qualquer homenagem institucional já venha tarde.

O que resta é o exemplo. E o exemplo é este: num país de anões morais, houve um homem que ousou ser Papa — e, para tanto, bastava ser homem de verdade.

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