Num tempo em que a cultura virou espetáculo de horrores e os artistas se transmutaram em sacerdotes de uma nova religião gnóstica — onde a perversão é sacramento e a mentira é virtude — o caso de Neil Gaiman, o queridinho dos intelectuais de camiseta preta e fãs de mitologia grega de segunda mão, surge como um exemplo gritante do abismo em que mergulhou a imaginação ocidental.
Gaiman, esse encantador de serpentes que nos vendeu sonhos embalados em horror softcore, retorna em Sandman: Terra dos Sonhos, com um conto digno da mais pura tradição fáustica — só que atualizado à miséria moral do nosso tempo. Um escritor decadente, Richard Madoc, desesperado por uma faísca criativa, compra de outro escritor mais velho e igualmente decadente, Erasmus Fry, nada menos do que uma musa grega, Calíope — feita prisioneira, abusada, usada como instrumento de inspiração literária. A musa, outrora símbolo da mais alta elevação do espírito, reduzida a escrava de homens medíocres. A alegoria é explícita, quase pornográfica: a arte moderna é produto do estupro espiritual.
E quando Calíope, entre lágrimas e gritos, exige sua liberdade, Fry — esse verme literato, avatar do próprio Gaiman? — responde com uma frase que deveria figurar em todos os manuais de denúncia cultural: “Escritores são mentirosos.” Pois é.
Agora, a ficção bate à porta da realidade com violência. Desde 2024, acusações começaram a emergir contra Neil Gaiman — relatos obscenos de abuso, manipulação e exploração sexual. Como sempre, os primeiros a defender o autor são os mesmos que falam de “separar obra e autor”, como se a mente que produz um pesadelo estivesse, por milagre, imune a viver nele. Mas o escândalo explodiu em 2025, quando a Vulture publicou um dossiê detalhado, digno de uma tragédia grega escrita por Kafka com diálogos de Bukowski. O rastro de vítimas é extenso: Scarlet Pavlovich, Katherine, Kendra — nomes reais, histórias que se repetem com o mesmo roteiro sórdido: um homem poderoso, um fã vulnerável, um convite disfarçado de oportunidade, e um ritual de dominação camuflado de “arte”.
As denúncias formam um padrão. Todas jovens, todas fãs, todas seduzidas e invadidas sob o pretexto da genialidade. A justificativa? Gaiman, em seu blog, declara — com aquela empáfia típica dos iluminados de si mesmos — que “poderia ter feito melhor”, que foi “emocionalmente indisponível”, mas, claro, nada daquilo é verdade como está sendo contado. A defesa típica do demiurgo pós-moderno: meia confissão, meia negação, e o resto jogado no colo da “narrativa distorcida”.
E aí voltamos ao velho Fry: escritores são mentirosos.
Quantos mais vão cair nesse mesmo molde? Woody Allen, James Franco, Morgan Freeman… a lista não é mais exceção, é regra. Hollywood é a nova Roma pagã, e seus deuses são tão imundos quanto os imperadores que deliravam entre orgias e gladiadores.
A hipocrisia é transparente. Gaiman posa de feminista, de aliado, de paladino da sensibilidade progressista — ao mesmo tempo em que reproduz todos os vícios de um patriarca decadente do século XIX, com um toque de fetichismo new age. “Mestre”, ele dizia. O termo que exige submissão, o título que denuncia a alma. O abuso aqui não é apenas físico: é ontológico. Um escritor que, ao invés de criar beleza, devora o espírito dos outros para fingir que ainda escreve com alguma centelha.
E como os grandes simulacros sempre caem, as consequências vêm: séries canceladas, contratos rompidos, reputação em ruínas. Mas o estrago já está feito. O mal não está apenas no que Gaiman fez, mas no que sua legião de admiradores continua a fazer: desculpas, relativizações, malabarismos morais para manter intacta a fantasia. Porque admitir que o herói é um monstro exige algo que o homem moderno perdeu: juízo moral.
A pergunta final é inevitável: será que vale mesmo a pena conhecer nossos heróis? A resposta de um velho realista seria: se for para conhecê-los, que seja sem idolatria. Porque o ídolo, mais cedo ou mais tarde, revela os pés de lama — e quem ajoelha diante dele termina com a alma suja.
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