A Religião Antes da Moral: Lições do Livro dos Mortos


Há uma lição que se perde no ruído do secularismo moderno: a religião antecede a moral, assim como o espírito antecede o corpo. Antes que houvesse os Dez Mandamentos, havia o Livro dos Mortos. Antes de Moisés, antes mesmo de Abraão, já havia sacerdotes no Egito entoando preces a Rá, ao som das águas do Nilo, pedindo não por perdão — como no cristianismo —, mas por passagem. E passagem para onde? Para o campo de juncos, Sekhet-hetepet, onde lagos e campos férteis ofereciam a eternidade da vida terrestre transfigurada, não um céu metafísico de bem-aventurança abstrata.

O Capítulo 64 do Livro dos Mortos, talvez o mais antigo de todos, já apresenta o esboço primitivo do que viria a ser o núcleo da espiritualidade ocidental: a súplica diante da morte. Ali, um orador se dirige a Rá, não como servo de um déspota cósmico, mas como alguém que busca a clareira da luz após a travessia das trevas. A prece, com toda sua sonoridade ritualística, ecoa como um salmo antigo, onde a esperança é modulada pela beleza da forma. Os egípcios entendiam o valor da palavra não como veículo de opinião, mas como instrumento de transformação ontológica. Recitar um texto sagrado não era repetir; era ser transformado por ele.

Mas o que torna esse capítulo particularmente revelador é a rubrica que o acompanha. Sim, a rubrica — esse detalhe técnico que escaparia ao leitor moderno, afogado no culto ao conteúdo sem forma. A rubrica instrui: só deve proferir a oração quem estiver limpo, puro, abstêmio, e longe das impurezas da carne. Notem: a eficácia do rito depende da disposição ritual do sujeito. O poder da palavra está condicionado ao estado interior e exterior do indivíduo. Isso é o oposto da crença moderna na "intenção subjetiva" como critério de veracidade. Aqui, o corpo é veículo espiritual, e não mero invólucro descartável.

Em contraste, o capítulo mais famoso do Livro dos Mortos, o de número 125, nos oferece uma confissão negativa. Trata-se de um catálogo de negações, uma ética fundada não em declarações de culpa, mas na ausência dela. “Não matei, não roubei, não menti, não cometi adultério...” – um decalque ético que, em linhas gerais, antecipa as prescrições mosaicas. Mas há aqui uma diferença crucial. No Egito antigo, a ordem moral não emanava da vontade arbitrária de um Deus pessoal, como ocorre nas religiões abraâmicas. Ela provinha de algo superior até mesmo aos deuses: ma'at, a ordem cósmica, a estrutura invisível que sustenta a existência.

Ma’at não é um mandamento, mas um princípio. Não se trata de um código jurídico revelado a um povo, mas de uma intuição espiritual inscrita na própria tessitura do real. Ao colocar a ordem acima dos próprios deuses, os egípcios reconheciam algo que escapou a muitos teólogos modernos: que toda autoridade, inclusive a divina, está subordinada a um Logos — uma inteligência que ordena, hierarquiza e dá sentido ao mundo. E é esta inteligência que o homem deve buscar, não como servo submisso, mas como alma que aspira ao conhecimento.

E aqui se abre uma brecha para a comparação com os monoteísmos posteriores. No cristianismo e no islamismo, o julgamento final é o ápice da teologia moral. O inferno é eterno, o paraíso é eterno, e a alma é julgada conforme os atos da vida terrena. Mas os egípcios, vejam só, não acreditavam no inferno eterno. A alma que falha em passar pelo julgamento é destruída — devorada por Ammit. Não sofre para sempre. Não é condenada a um suplício eterno. Ela simplesmente deixa de existir. Isso revela uma concepção mais austera e menos sentimental da justiça cósmica. No Egito, não há espaço para a misericórdia como indulgência. Há ordem ou dissolução.

O que é notável, e aqui talvez esteja a maior diferença entre o Antigo Egito e o cristianismo, é a obsessão egípcia com a integralidade do corpo. O falecido não pedia apenas por salvação. Pedia para que suas sobrancelhas não caíssem, que seu fígado não apodrecesse, que sua língua não fosse levada. É risível para o moderno, cuja espiritualidade abstrata o impede de compreender o vínculo sagrado entre forma e essência. Para os egípcios, a alma sem corpo era uma mutilação. O corpo era símbolo — e como todo símbolo verdadeiro, era também instrumento de realidade.

O problema com as leituras modernas do Livro dos Mortos é que se busca nele o que já se conhece: analogias com os Salmos, com o Alcorão, com o Gênesis. Mas o que se deve buscar ali é justamente o que nos falta: o que foi esquecido, ocultado, descartado pelo nosso racionalismo linear. A pluralidade de componentes da individualidade egípcia — khat, ka, ba, ren, khaibit, sekhem — demonstra que os antigos viam o ser humano como uma multiplicidade harmônica, não como um dualismo simplista de corpo e alma. A teologia moderna reduziu o homem a uma equação moral. Os egípcios viam nele uma constelação.

O que isso nos ensina? Que o julgamento não é um ato judicial, mas uma revelação. Que ser julgado é ter sua alma pesada diante da ordem do cosmos, e que essa ordem é anterior à consciência, anterior à linguagem, anterior até mesmo aos deuses. Os egípcios, como Platão mais tarde, sabiam que o bem não é uma convenção, mas uma realidade que se impõe — não pelo grito, mas pelo silêncio da forma. Ma’at não grita. Ela brilha.

É por isso que o Livro dos Mortos não é apenas uma peça arqueológica. Ele é um tratado espiritual, um manual ontológico e uma obra-prima filosófica anterior à filosofia. E quem não entende isso continuará lendo-o como uma curiosidade, em vez de um testemunho — o testemunho de que, antes das leis, antes das revoluções, antes da moral e do Estado, havia a consciência de uma ordem invisível que habita tudo e todos. E enquanto não retornarmos a ela, estaremos todos — mesmo os mais piedosos — absolutamente perdidos.

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.