O tomismo é objetivo. E, por objetivo, não quero dizer apenas “claro”, ou “racional”, mas estruturado segundo uma lógica que parte do pressuposto — implícito, muitas vezes inconsciente — de que o mundo tem uma ordem fixa, uma gramática moral que existe antes de nós, independentemente das nossas desordens interiores, paixões, traumas ou histórias pessoais. Para Tomás, o pecado é algo que se define, como se se estivesse redigindo um verbete de dicionário. O orgulho? Desejo de ser mais excelente do que se é. A inveja? Tristeza pelo bem do outro. A acídia? Tristeza diante de um bem que se crê inalcançável.
É bonito. E, como sistema, é irrepreensível. Tem simetria, harmonia interna, nitidez conceitual. Mas, como toda forma de pensamento que pretende derivar a ética de uma ontologia estática, padece de um vício de origem: ignora o sujeito desejante. Ignora que nós não somos apenas seres que se desviam da medida reta — mas que essa medida, essa régua, essa balança, é colocada diante de nós pelos outros, e quase nunca sabemos quem nos entregou o manual.
A teoria mimética de Girard, ao contrário, não começa pelo “o que é”. Ela começa pelo “quem deseja”. Melhor dizendo: pelo “quem deseja através de quem”. A pergunta central não é o que é o orgulho, mas: aos olhos de quem você quer parecer excelente? E, com isso, dissolve-se a aura do objeto. O pecado, para Girard, não é um desvio da razão, mas um colapso da relação.
Esse deslocamento de eixo é crucial. A filosofia tomista parte da premissa de uma razão que enxerga a ordem natural das coisas. É a ideia clássica de que desejar bem é desejar ordenadamente — isto é, desejando segundo o valor objetivo do objeto. Mas, e se o valor do objeto for um efeito do desejo alheio? E se não desejamos as coisas por elas mesmas, mas porque vimos alguém desejá-las antes?
Dostoiévski, aquele moralista russo que teria feito Tomás perder o sono, intui isso com clareza nas Memórias do Subsolo. O narrador quer uma “vontade independente”. Quer ser senhor de si, legislador de sua própria lei. Uma caricatura do ideal moderno, dir-se-ia. Mas, logo depois, descobrimos que ele deseja ser visto como independente por... velhos colegas da escola. E por uma prostituta. Eis a tragédia: o sujeito da vontade autônoma é, no fundo, um simulacro sustentado pelo desejo de reconhecimento. Toda sua independência é um teatro montado para olhos alheios. E o palco é a humilhação.
Aqui, a teoria mimética mostra sua força: o sujeito não é um ente estável, autônomo, guiado por uma “reta razão”, mas um feixe de desejos cruzados, um campo de forças simbólicas onde o Eu é menos uma substância que um efeito colateral.
E isso nos leva ao coração do problema. A ética tomista, com sua estrutura objetiva, funciona bem numa sociedade hierárquica, onde os lugares são dados, os papéis são conhecidos e a honra é distribuída segundo critérios estáveis. Mas quem vive hoje numa ordem dessas? Eu mesmo — sujeito sem cargo, sem autoridade, paisano na acepção mais despojada do termo —, por que me sentiria obrigado a desejar dentro da minha medida, se essa medida é imposta por gente que respeito menos do que o entregador do iFood?
Talvez esse seja o ponto: o tomismo pressupõe que sabemos o nosso lugar. Mas a vida moderna, saturada de mídias e performances, tem por base o colapso de qualquer ideia de “lugar natural”. Somos todos deslocados. E, mais ainda, somos todos objetos do desejo alheio — e desejantes dos desejos que nos cercam.
Se alguém me pergunta: por que você quer parecer independente aos olhos de gente que você despreza? — essa pergunta me atinge. Mais que um conceito tomista. Porque me desvela. Porque me expõe. Porque não responde: pergunta. E é isso que o tomismo não faz. Ele define, não interroga. Ele condena, mas não compreende.
E, no entanto, a teoria mimética também tem suas limitações. Sua lucidez não é ética, mas psicológica. Ela não nos diz o que é o bem, mas por que o desejamos. Ela não condena o pecado; ela explica o colapso. Mas, ao explicar, não nos salva. O sujeito mimético entende o mecanismo — mas isso não o impede de continuar desejando por espelhamento.
Por vezes, porém, um pequeno milagre acontece: o que Girard chamaria de conversão romanesca. É quando, anos depois, você olha para alguém que antes desejava com fúria ou carência, e enxerga essa pessoa pela primeira vez — não como objeto de desejo, mas como ser humano. É um olhar que já não deseja, mas também não despreza. Não é a objetividade do tomismo; é o afeto maduro da memória. Um carinho que nasce do entendimento da própria ilusão. Você vê aquilo que o desejo escondia.
Nessa fase, talvez, a filosofia objetiva de Tomás recupere algum valor. Não como verdade eterna, mas como vestígio de uma maturidade alcançada. Quando o objeto deixa de ser fetiche e passa a ser sóbrio. Quando a vontade já não é uma performance para o Outro. Aí sim, podemos começar a pensar em ordem, em medida, talvez até em virtude — mas não mais como dogma, e sim como conquista de lucidez.
Por isso, não se trata de escolher entre Tomás e Girard. Trata-se de entender que o real só se revela por camadas. E que, para muitos de nós, a definição de orgulho como “desejo desmedido de excelência” é menos perturbadora do que a pergunta: “excelente para quem?”
E, por vezes, é só quando desistimos de parecer excelentes que começamos, de fato, a ser alguém.
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