Por mais paradoxal que pareça, há algo de profundamente arcaico na figura do jovem que, isolado em seu quarto, trama uma carnificina. Não é novo, tampouco moderno. É o retorno de um tipo humano que a sociedade preferiu esquecer — o homem que, privado de sentido, e não apenas de afeto, volta-se contra o próprio símbolo da continuidade: a escola.
Durante anos, termos como incel, chan culture, red pill e até mesmo neonazismo digital não passavam de ruídos subterrâneos — fenômenos de porão, cultivados em fóruns anônimos por jovens ressentidos, irônicos, muitas vezes brilhantes, quase sempre mal compreendidos. Os jornalistas que ousavam entrar nesse território eram vistos com o mesmo estranhamento com que um astrônomo medieval teria sido recebido numa vila camponesa: sabiam demais sobre coisas demais e eram, por isso, tratados como suspeitos.
Hoje, tudo isso é pauta do horário nobre. O que antes era matéria crua da sociologia e do submundo digital passou a ser servida no SuperPop. Isso, por si, já é um sintoma. Quando o grotesco vira entretenimento, é porque o real se dissolveu, e com ele a capacidade de compreender o mal como uma realidade metafísica — não como um erro de algoritmo ou falha de moderação de conteúdo.
Os poderes públicos, tardiamente, acordaram para a extensão da desgraça. Investigam salas de Discord, canais privados, memes cifrados — como quem tenta apagar um incêndio com um borrifador. Identificam “panelinhas” de jovens trocando imagens violentas, cultivando ressentimentos, incentivando a automutilação ou o suicídio. Intervêm, como devem intervir. Mas o mal que enfrentam já não é policial. É ontológico.
Pergunta-se, então: como é que se chega a isso? Como um adolescente comum, criado a pão de forma, videogame e slogans progressistas, desperta um dia tomado por uma pulsão de extermínio — não apenas dos outros, mas de si mesmo?
A resposta — se é que se pode chamar assim — é menos um diagnóstico do que uma constatação histórica: a vida perdeu sua gravidade. Não há chão. E onde não há chão, o que se busca não é salvação, mas ruído. Ruído que preencha o silêncio brutal da existência sem destino. A pandemia, a miséria econômica, o desmonte da educação, os algoritmos de ódio e a infantilização da cultura são apenas o pano de fundo. O palco mesmo é o vazio. Um vazio que não é ausência, mas potência destrutiva.
Num tempo em que a realidade se mede pela visibilidade, o massacre tornou-se uma forma última de afirmação. Os ataques em escolas não são apenas crimes — são performances de niilismo. Um grito mudo, mas espetacular, feito para ecoar nos corredores digitais da memória coletiva. A lógica do terror é simples: existir é ser lembrado. E se não posso ser amado, serei temido. E se não posso ser herói, serei monstro.
A psicologia, claro, tenta entender. Mas há atos que não se explicam com diagnósticos. O caso Columbine, por exemplo, permanece envolto num mistério essencial. Os autores deixaram fitas, cartas, sinais. Tudo destruído pela polícia, como se o Estado temesse encarar o abismo que habita seus próprios filhos. Sobrou o vazio — e com o vazio, vieram os mitos: bullying, Marilyn Manson, “Doom”. Tudo serve para calar a confissão mais óbvia: nós não sabemos. Nunca soubemos. E talvez não queiramos saber.
É precisamente aí que nasce o legado. Quando o crime carece de sentido, o público inventa um. E essa invenção, por mais tola ou espetacular, fixa o ato no tempo. É o contrário do esquecimento — é a consagração pela infâmia. O jovem que mata quer ser uma estátua invertida, um nome que não se apaga, mesmo que gravado em sangue.
Neste cenário, o que se vê não é a simples falência da autoridade, da cultura ou da família. É algo maior: a demolição da interioridade. Um sujeito vazio — mas tecnicamente equipado —, cercado de estímulos, mas carente de significados, torna-se uma cápsula de destruição pronta a explodir. Não por ideologia, nem por religião. Mas por puro desespero existencial.
Alguns tentam responder a isso com esperança. Criam campanhas, slogans, plataformas de “conteúdo saudável”. Tudo necessário, tudo insuficiente. Porque, no fundo, o problema não é de comunicação. É de formação. Formação da alma, da imaginação moral, do senso de realidade. E disso, meus caros, o nosso tempo desistiu.
Enquanto isso, o teatro do absurdo continua. Num lado da tela, um menino planeja seu ataque. No outro, um influenciador ensina como aplicar batom. E ambos, curiosamente, estão falando da mesma coisa: como existir num mundo que não quer mais saber o que é ser humano.
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