Caso ainda lhe tenha escapado, há uma força discreta, porém universal, que perpassa a totalidade da experiência humana — do andarilho desamparado ao acadêmico laureado: a dilaceração silenciosa da espera.
Somos criaturas tensionadas pela expectativa. Ansiamos por transformações redentoras, por notícias que quebrem o marasmo, por vozes que nos resgatem do abismo cotidiano, por afetos que transcendam a trivialidade. E, nesse estado de suspensão crônica, marchamos como espectros alimentados por uma esperança sempre adiada, com a vã crença de que o porvir trará sentido ao caos.
Esse impulso que nos impele — a esperança, esse simulacro de ânimo — é igualmente o lastro que nos submerge. Sustenta-nos, é verdade, mas à custa de angústia e desapontamento. Trata-se de uma promessa que se posterga indefinidamente, que nos exila do presente, transformando o agora em um palco de ausência. Um narcótico administrado em doses sutis, mas contínuas.
Os helenos arcaicos intuíram essa dinâmica — não como crença, mas como percepção cristalina da condição humana. Não aguardavam redenção vinda do além; ao contrário, encaravam a vulnerabilidade da existência sem o consolo de mitos transcendentes. Talvez compreendessem, melhor que nós, que a vida não é um enigma a ser decifrado, mas uma sucessão de feridas a serem atravessadas. E que o sentido, se há algum, é obra do homem, não dos deuses.
Tome-se como ilustração o episódio paradigmático de Pandora. Os deuses — projeções alegóricas da psiquê coletiva — moldam a figura feminina como oferenda e castigo simultâneos. Hesíodo, ao descrevê-la como um “mal encantador”, reconhece a ambivalência daquilo que fascina e, ao mesmo tempo, devasta.
A ela é confiada uma ânfora selada, cuja natureza se oculta sob o véu da interdição. Proíbem-na de abri-la. Naturalmente, o interdito suscita transgressão. Quando enfim a tampa se rompe, escapa o conteúdo: não dádivas, mas a tessitura bruta da realidade — enfermidades, miséria, aflição, finitude. A catástrofe não é acidente da vida humana: é seu pano de fundo constante. Apenas o ingênuo moderno, nutrido a manuais de autoajuda e promessas de “vibrações elevadas”, poderia sustentar o oposto.
Mas o gesto cruel e engenhoso dos deuses reside no detalhe final: ao fundo da jarra, permanece a esperança. Que entidade é essa, senão o artifício psíquico que nos impede de sucumbir à vertigem do desespero? A derradeira ilusão. O fiapo de sentido que perpetua o martírio, acenando com miragens de plenitude que jamais se realizam.
Neste ponto, o mito revela sua precisão simbólica: a esperança é uma entidade bifronte. Alavanca e algema. Nos obriga a continuar, mas nos nega repouso. A espera contínua é o traço patológico de uma civilização marcada por ansiedade crônica e desejo de transcendência não consumada.
Poetas e pensadores, ao longo dos séculos, debruçaram-se sobre essa constatação — não por devotamento religioso ou otimismo pueril, mas por lucidez. Compreendiam que todo ato de revelar — inclusive o de escrever — cobra um tributo. Anne Carson adverte: ao se abrir algo, abdica-se do domínio sobre aquilo. Está correta. Cada palavra lançada no papel é uma rendição ao irreversível.
W. H. Auden enxergava na narrativa pandórica uma advertência contra o delírio iluminista de que tudo pode — e deve — ser decifrado. O apetite desmedido pelo saber pode converter-se, paradoxalmente, em aniquilação cultural. Pois há verdades cuja nudez é insuportável — e que, uma vez reveladas, não podem mais ser empurradas de volta para as sombras. E então? Resta apenas suportá-las.
Eis por que os mitos persistem: não por força de encantamento místico, mas por sua acuidade analítica. São formas visuais da angústia, instrumentos de nomeação do indizível. Não curam — mas iluminam. E isso, em noites em que o mundo silencia e apenas a consciência permanece em vigília, é mais que suficiente. Pois é nesse interstício de lucidez e tormento que nos encontramos: sustentados apenas pelos signos que forjamos para não naufragar.
Com ceticismo solidário,
J. Fagner
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