A Dieta da Imaginação: uma leitura sobre Dieta da Poesia, de Afonso Cruz



A literatura, se ainda ousamos tratá-la com reverência, é o território dos fortes. Não dos resilientes ou dos felizes, mas dos que suportam a grandeza de Shakespeare, a exatidão de Cervantes, a melancolia de Kafka, e o abismo sem bordas de Proust. Em Dieta da Poesia, Afonso Cruz propõe um remédio leve, quase homeopático, à tragédia de estar vivo: a poesia emagrece. Mais ainda — a poesia salva. Trata-se, no entanto, de uma salvação com açúcar.

Ora, a premissa já é sintomática: um homem de nome Bazulaque — um nome que evoca não só o grotesco, mas o riso desamparado — perde peso ao se alimentar de poemas. Seria esta mais uma fábula alegórica da literatura enquanto nutrição da alma? Talvez. Mas Cruz escreve como quem acredita, e essa crença, embora encantadora, revela sua fraqueza. A literatura que emagrece, que melhora o humor, que substitui o desejo de açúcar pela fome de palavras — essa literatura é terapêutica, mas não é trágica. E sem tragédia, como já sabíamos com os gregos, não há catarse.

Afonso Cruz, cuja pena tem o dom de fluir com leveza e brilho, faz-se aqui cronista de um mundo onde a poesia é digerível, até palatável. O problema é que a poesia verdadeira — aquela que funda o cânone, que resiste ao tempo, que nos obriga a reler, como Leaves of Grass ou os sonetos de Shakespeare — jamais foi de fácil digestão. Dieta da Poesia aposta no lirismo sem arestas, no riso que consola e nunca perturba. A sua beleza é, por isso, provisória.

Bazulaque, esse anti-Bartleby, diz sim. Ao contrário do copista melvilliano que preferia não, o personagem de Cruz opta pela invenção, pelo encantamento, pela bondade. E como resistir? A ideia é sedutora. Mas o "sim" de Bazulaque é o sim da literatura domesticada, da invenção otimista, do mundo onde as cartas sempre encontram seus destinatários — ainda que tardiamente. Melville, Dostoiévski, até mesmo o velho Kafka, sabiam que há cartas que se perdem para sempre. E é neste abismo, nesta ausência de sentido ou destino, que se forma a verdadeira fome do leitor.

Cruz entrelaça histórias com habilidade. A narrativa que envolve cartas falsificadas para consolar pais enlutados remete ao conto A Saúde dos Doentes, de Cortázar, e à doçura amarga de Central do Brasil. Mas o efeito é didático, quase pedagógico — como se a função do escritor fosse ensinar, proteger, enfeitar o real. Ora, a função da literatura é, sobretudo, ferir. Desferir seu golpe mais preciso contra o consolo fácil.

Não nos enganemos: Dieta da Poesia é um livro inteligente, encantador, com trechos memoráveis. Mas é também um livro que se aproxima perigosamente do kitsch — essa estética do conforto emocional — ao propor que a poesia possa substituir batatas fritas ou doces com a mesma eficácia de uma cápsula de fibra alimentar.

Há uma passagem no livro que serve de síntese involuntária: “Leia, pela sua saúde.” Eis aí o problema. A literatura não foi feita para a saúde. Foi feita para o excesso, para a ruína, para os que, como Lear, como Hamlet, como o narrador de Notas do Subsolo, não podem mais fingir que o mundo é justo ou tolerável.

Harold Bloom, esse último sacerdote do cânone, diria talvez que Dieta da Poesia é um livro que confunde sabedoria com autoajuda, beleza com conforto. Um livro que acredita na poesia como nutriente leve, mas que esquece que todo verdadeiro poema é uma ferida que se abre — e não se fecha.

Ainda assim, há algo a admirar. O gesto de Afonso Cruz é sincero. Ele ama a literatura. Mas talvez ame demais o leitor. E a literatura, quando verdadeira, não é feita para agradar — é feita para assombrar. Para engordar a alma, mesmo que à custa do corpo.

Se é uma dieta, é uma que não emagrece: incha de fantasia, de esperança, de ternura. E isso, para muitos, já é milagre suficiente. Mas para os que ouviram as vozes de Whitman, Blake, Dickinson ou Borges, sabe-se: há fome maior. E ela não será saciada com doçura.

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