Numa manhã fria da década de 1930, um rapaz negro chamado Bigger Thomas atravessa um beco da periferia sul de Chicago com as mãos nos bolsos e o olhar encostado no chão. Ele vive num quarto apertado com a mãe, o irmão e a irmã — uma família sustentada por restos de esperança, esmolas de dignidade e uma geladeira que nunca se enche. Ele tem 20 anos. Já roubou antes. Já teve medo antes. Mas naquela manhã, ele vai a uma entrevista de emprego. Vai dirigir para uma família branca e progressista.
É aqui que a história começa. E embora seja um romance — publicado em 1940 por Richard Wright, filho de lavradores no segregado Mississippi — a sensação que se tem ao reler Filho Nativo hoje, décadas depois, é a de estar diante de um documento íntimo, inquieto, algo entre o retrato psicológico e o estudo de campo. Wright, que escreveu com os olhos abertos e o punho cerrado, não queria apenas contar uma história. Ele queria que você sentisse o peso do que não se diz: o olhar prolongado, o gesto rígido, o pavor de errar diante da generosidade branca.
A primeira vez que Bigger entra na casa dos Daltons — seus novos empregadores — ele é recebido com sorrisos e um gesto de boas intenções. O Sr. Dalton é o tipo de homem que doa livros para meninos negros e cita cifras de caridade com orgulho doméstico. A filha, Mary, é jovem, moderna, e chama o motorista pelo primeiro nome. Isso, para Mary, é gentileza. Para Bigger, é um risco.
Porque em sua experiência, o excesso de atenção é tão perigoso quanto a hostilidade. Ser visto de mais — como negro, como pobre, como símbolo — nunca foi seguro. E é nesse ponto que Richard Wright encontra sua nota mais precisa. O que Filho Nativo retrata não é apenas um cenário de injustiça, mas a coreografia sutil do medo, do constrangimento, da suspeita que se instala mesmo nas relações que parecem pacíficas.
Bigger não sabe onde colocar as mãos quando Mary o trata como um amigo. E quando ela o convida a entrar no carro com o namorado comunista, Jan, ele já sabe que a noite terminará mal, mesmo que ninguém diga nada, mesmo que tudo pareça certo.
Ao longo das 500 páginas do romance, Wright faz de Chicago um campo minado de códigos sociais. Cada escolha de Thomas é uma aposta: falar ou calar, correr ou ficar parado, aceitar ou desconfiar. Ele não é um personagem guiado por ideologia, nem por plano de vida. Ele é guiado por sobrevivência — uma bússola trêmula num mapa que muda conforme quem está olhando.
No fundo, porém, existe algo mais. Existe o menino que queria voar. Ele menciona isso uma vez, de passagem, ao amigo Gus: gostaria de ser piloto de avião. E então ri. Porque sabe que é impossível. Não porque falte capacidade — mas porque a porta da cabine está trancada antes mesmo de ele tentar tocá-la.
Esse momento, quase imperceptível, é o que transforma o livro em algo mais do que uma crônica de opressão racial. Filho Nativo é também um estudo sobre o que acontece com os sonhos silenciosos — aqueles que não encontram linguagem, nem incentivo, nem espaço. E o que acontece, geralmente, é que eles apodrecem. Às vezes, de forma triste. Às vezes, violenta.
Richard Wright conheceu muitos homens como Thomas. Ele próprio cresceu em meio à miséria e à exclusão, numa época em que meninos negros aprendiam desde cedo a esconder a raiva e domesticar a ambição. Ao mudar-se para o norte, depois para Paris, e ao alcançar sucesso como escritor, Wright jamais esqueceu o peso do olhar do outro — o tipo de olhar que define, de fora, quem você é.
Não é à toa que Filho Nativo não poupa ninguém. Nem os racistas declarados, nem os brancos “progressistas” que acreditam entender. Nem mesmo Thomas. Wright sabia que a dor não é sempre limpa. Sabia que a revolta raramente é poética. Ele escreveu sobre um homem que erra — que mata, que foge, que mente — não para redimi-lo, mas para mostrá-lo como parte de um mundo que nunca lhe permitiu ser inteiro.
Décadas depois, a história de Thomas ainda paira como uma névoa espessa sobre os centros urbanos. Talvez com nomes diferentes. Talvez com sonhos adaptados. Mas o sentimento é reconhecível. O medo de errar ao tentar se encaixar. O desejo de ser aceito sem deixar de ser quem se é. E a consciência, quase inata, de que isso pode não ser possível.
Wright não propôs soluções. Não desenhou saídas fáceis. Ele apenas seguiu Thomas em sua rota trágica, com um olho atento às frestas do silêncio. Escreveu como quem observa uma cidade pela janela de um trem lento: reparando nos rostos, nas escolhas, nos gestos curtos que dizem tanto. E ali, entre os trilhos, o leitor ainda encontra o menino que queria voar.
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