Entre Gregor Samsa e Seth Brundle – A Leitura da Alma pela Deformação



Kafka, o melancólico profeta da modernidade, criou em A Metamorfose uma das mais perturbadoras e reveladoras alegorias da literatura do século XX. Não porque nos introduza a um mundo fantástico, mas porque destrói as convenções da fantasia ao fazer do absurdo um espelho sombrio do cotidiano. A transformação de Gregor Samsa não é um delírio barroco nem uma licença surrealista: é uma epifania de crueldade cotidiana, revelando como a alma humana é reduzida, dia após dia, pela maquinaria social e familiar.

Encontrei, certa vez, um jovem leitor que chegou a Kafka através de um outro inseto — este, no entanto, de um universo mais visível: o cinema de horror de David Cronenberg, com A Mosca. A justaposição não é trivial. Seth Brundle, como Gregor Samsa, sofre uma metamorfose grotesca. Mas enquanto Cronenberg nos guia pelas sendas do nojo biológico, Kafka nos lança no abismo do nojo social e existencial. Ambos, porém, culminam na mesma desintegração: o abandono da humanidade, não por monstros externos, mas por aquilo que mais deveria nos reconhecer — a família, os colegas, os amantes.

A comparação entre as duas obras não exige rigor temático, mas sensibilidade metafórica. O horror de Cronenberg é visível; o de Kafka é intangível, mas infinitamente mais corrosivo. O primeiro trabalha com vísceras, mutações celulares e pele putrefata. O segundo com o silêncio, a indiferença e a fala que não é mais ouvida. Gregor, em sua forma de inseto, ainda pensa como homem. A tragédia é que isso não importa mais. A linguagem falha. A identidade é apagada não pela metamorfose em si, mas pela forma como o outro a vê.

Lembro de William Blake, outro dos meus poetas visionários, quando dizia que “o que hoje é provado, outrora foi apenas imaginado.” Kafka parece ter invertido essa sentença: “o que hoje é absurdo, outrora foi apenas cotidiano.” O jovem que descobre A Metamorfose depois de A Mosca vivenciou, ainda que sem o saber, a pedagogia do grotesco. Essa é uma via de entrada legítima, pois todo verdadeiro leitor é, antes de tudo, um errante. E nada mais kafkiano do que encontrar a verdade pelas portas mais improváveis.

Há, ainda, um dado biográfico nesse testemunho do jovem leitor que me comove: a ausência do cinema, a escassez de livros, a força da televisão como único meio de fruição estética. E, mesmo assim, o milagre da leitura acontece — por meio de um professor, um gesto de empréstimo, uma coincidência. Isso é a prova da permanência de Kafka: ele continua a encontrar seus leitores não no aparato acadêmico, mas nas margens, entre os que, como Gregor, sentem a desumanização sem ainda terem palavras para nomeá-la.

A interpretação madura do mesmo leitor, anos depois, revela o aspecto mais comovente da obra kafkiana: seu poder de revelação é progressivo. Kafka não se entende — Kafka se sofre. E, mais tarde, quando as dores do mundo nos alcançam com mais nitidez, começamos a compreender que o inseto não está fora de nós. Ele é nossa projeção mais íntima. É a forma que assumimos aos olhos dos outros quando falhamos em corresponder às exigências econômicas e afetivas que pesam sobre o indivíduo.

Kafka sabia que a família, esta instituição tão celebrada pelas tradições burguesas, poderia ser uma das instâncias mais opressivas da existência. O parasitismo da família Samsa não é um acidente: é a lógica mesma da estrutura. Gregor não é amado — ele é necessário. Deixa de sê-lo e é descartado. A maçã atirada pelo pai, que apodrece em suas costas, é a nova forma de estigma: um símbolo da expulsão do paraíso burguês. Gregor é o Adão do século XX, mas sem pecado e sem promessa de redenção.

Em Kafka, o realismo moral se infiltra no fantástico como uma ferrugem que tudo corrói. Seu estilo é de uma sobriedade brutal — sem adornos, sem psicologismo, sem misericórdia. É isso que o torna tão temido e, paradoxalmente, tão necessário. Em um tempo como o nosso, em que o valor do ser humano se mede por sua utilidade e produtividade, A Metamorfose permanece como um evangelho às avessas: aquele que denuncia que o trabalho, ao invés de nos redimir, pode nos apagar.

Ao jovem leitor que, ainda criança, aguardava ansioso A Mosca na programação da televisão e acabou por encontrar Kafka: você viu mais longe do que muitos acadêmicos jamais verão. Pois viu que o horror que vale é aquele que escancara o que sempre esteve oculto — que nos transforma não em monstros, mas em espelhos.

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