A dieta da poesia: uma fábula contra o embrutecimento


Histórias de dieta, temos aos montes. Tem quem viva de carne crua, de folhas verdes, de semente de chia e selfie no espelho. Tem jejum intermitente, jejum espiritual, jejum cósmico. Tem gente que só come o que caiu da árvore, como se a gravidade fosse critério nutricional. Tudo isso embrulhado numa mistureba de ciência de almanaque com moralismo alimentar. Mas nenhuma dessas engenhocas modernas chega perto da única dieta que presta: a da poesia.

Foi Afonso Cruz, escritor português, quem resgatou essa ideia luminosa e subversiva em seu novo livro Dieta da poesia, que chega ao Brasil pela Dublinense. O título já diz tudo: é um livro de emagrecimento, sim — mas de outro tipo. Aqui se perde peso onde mais importa: na alma empanzinada de lixo cultural, na mente gordurosa de slogans, na linguagem atolada em carboidrato mole.

O protagonista atende pelo apelido de Bazulaque — uma palavra que o próprio livro define como sinônimo de sujeito gordo, glutão e meio desastrado. Nome justo. O sujeito era desses que comiam tudo, do ensopado de vísceras ao pastel de feira, com ou sem talheres, frio ou quente, bem feito ou requentado. Não discriminava, desde que entrasse pela boca. A cultura que temos hoje funciona igual: consome tudo, entende nada, regurgita slogans e chama isso de posicionamento.



Mas a história muda quando Bazulaque tenta pegar um pote de bolachas no alto da estante. No caminho, um livro. No livro, um poema. E a desgraça começa aí: enquanto mastiga a bolacha, lê o poema. E enquanto lê, percebe que aquilo tem mais sustança que a guloseima. E não para mais. O livro começa a operar por dentro — desinflando os excessos da alma. Ele lê e, por alguma razão inexplicável para o nutricionismo moderno, emagrece.

A partir daí, ele já não come enquanto lê. Agora lê enquanto come — o que, como bem observa Cruz, faz toda a diferença. Começa a caminhar. Depois, a escrever. De glutão passivo, torna-se sujeito ativo da própria vida. Perde peso, mas ganha espessura. A transformação não vem de mandinga ideológica, vem daquilo que sempre funcionou: boa leitura, silêncio e alguma solidão criativa.

A dieta da poesia não é uma metáfora sofisticada. É literal. Lê-se e se perde o desejo de se empanturrar. Lê-se e se ganha alguma ordem interior. Como dizia um velho filósofo que o autor provavelmente nunca leu, a boa arte não é distrativa — é purgativa. Em vez de embalar o caos, ela o exorciza. Cruz, nesse ponto, acerta.

Mas não para aí. A história se desdobra. Bazulaque torna-se escritor de cartas, inventa destinos mais felizes para os outros, altera realidades por meio da linguagem. Não por caridade barata, mas por amor à verdade superior da ficção. Quando a realidade é estúpida, a mentira criativa é um serviço público. Isso, claro, escandalizaria os moralistas de plantão, que preferem a tristeza documentada à alegria inventada.

Cruz cria um contraponto perfeito ao Bartleby de Melville — aquele sujeito murcho, que recusava tudo com seu famoso “preferia não”. Bazulaque é o anti-Bartleby. Diz sim. Sim à vida, sim à invenção, sim à arte que salva sem pedir licença. Enquanto Bartleby afunda no niilismo passivo, Bazulaque sobe estantes, caminha entre livros, escreve cartas, espalha sentido.

Há, sim, momentos em que Cruz escorrega. Às vezes explica demais. Não confia o bastante na inteligência do leitor e enfia parênteses didáticos como quem põe rodinhas na bicicleta de adulto. Mas mesmo isso, embora irritante, não apaga o brilho da ideia central.

O livro é leve, espirituoso, comovente sem chantagem emocional. E mais importante: é uma resposta — mesmo que involuntária — à idiotização cultural em curso. A essa onda de conteúdo “acessível”, “inclusivo” e “positivo” que trata o leitor como um doente terminal emocional que precisa ser embalado o tempo inteiro. Dieta da poesia não infantiliza. Faz o contrário: convoca à maturidade. E, num tempo como o nosso, isso é quase um ato revolucionário.

No fim, o que se propõe é simples: quando tiver vontade de comer o que não deve, leia um poema. Quando sentir o vazio, não o encha com fritura ou feed. Pegue um livro. Leia. Caminhe. Escreva. Isso emagrece. Isso embeleza. Isso humaniza.

E isso, diga-se de passagem, vale muito mais que meia dúzia de quilos a menos na balança.

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.