Comida comum: a cozinha contra a idiotização alimentar


Neide Rigo, ao contrário de tantos especialistas em nutrição que falam de cima para baixo, parte da vida real. Não escreve como quem quer impressionar a academia, nem como quem deseja vender um estilo de vida. Seu livro Comida comum é uma espécie de manifesto involuntário contra a pasteurização do gosto e da linguagem. É um gesto raro: simples, sem ser simplório; afetivo, sem ser sentimental.

Neide não busca o glamour. Sua relação com a comida tem chão, tem vizinhança, tem barro nas unhas. Cresceu cercada por migrantes, pela fala atravessada da periferia, pela sabedoria de roça dos avós. Ouviu, olhou, aprendeu. Quando escreve, transmite esse saber com naturalidade, sem fetiche. Não tenta transformar beldroega em superalimento nem inventar moda em torno de pancs. Seu foco não está na exibição, mas na utilidade — e isso já a separa de 90% da literatura gastronômica atual.

Comida comum é um livro honesto. A autora compartilha sua trajetória de forma clara, sem se esconder atrás de termos técnicos. Não disfarça a origem modesta, tampouco sente necessidade de pedir licença ao leitor ilustrado. Trabalha com o que conhece. Sua formação em nutrição existe, mas é a vivência que guia a escrita.

O livro trata de plantas alimentícias não convencionais — as tais pancs — com um olhar prático. Em vez de reduzi-las a tópicos de curiosidade, Neide as insere no cotidiano. Mostra como encontrar, como usar, como entender o lugar delas no ecossistema e no prato. Sem mistificação. Comer panc, para ela, é parte de um projeto maior: viver com mais autonomia, escapar da dependência da indústria, reativar os vínculos com o entorno.

Rigo sabe nomear. Isso pode parecer detalhe, mas num mundo onde até cardápios tratam alimentos como abstrações genéricas, dar nome à planta é um ato de resistência. Não existe salada com “folhas verdes” em Comida comum. Existe serralha, existe capuchinha. Essa precisão é parte do combate contra a ignorância gastronômica e contra a perda do vocabulário alimentar.

A escrita é seca quando precisa ser, mas ganha força nas imagens bem escolhidas. O mangarito, por exemplo, é descrito sem afetação e sem vulgaridade. A autora explica sua textura e seu preparo com a clareza de quem já cozinhou aquilo centenas de vezes. As metáforas que usa são eficazes — não aparecem como enfeite, mas como ferramenta para ensinar.

Mais do que apresentar ingredientes esquecidos, Neide mostra como se relacionar com a comida de forma mais lúcida. Em tempos de ultraprocessados e receitas de TikTok, isso é quase um gesto de insurgência. O livro é uma denúncia suave contra a infantilização alimentar em curso, que troca saberes herdados por embalagens coloridas e soluções rápidas.

Rigo aplica esse mesmo olhar em suas ações fora do papel. Em oficinas com merendeiras no interior do Brasil, não chega como quem traz a luz. Observa, escuta, propõe junto. Essa postura deveria ser regra em qualquer projeto educativo, mas virou exceção. E é justamente esse tipo de exceção que Comida comum representa.

Durante a pandemia, ao não poder viajar, Neide voltou-se para o essencial: ensinar a fazer pão com o que havia. Fermento do zero, reaproveitamento de ingredientes, improviso como método. Esse tipo de cozinha — espontânea, livre, racional — é um antídoto contra a mentalidade servil que acredita que cozinhar só vale a pena se for bonito no Instagram.

Ao final, o livro não pede aplausos. Oferece conhecimento. E conhecimento não é matéria de vaidade: é instrumento de liberdade. Comida comum é uma crítica silenciosa, mas firme, ao modelo alimentar dominante. Seu valor está justamente na recusa ao espetáculo e na defesa daquilo que é essencial e verdadeiro — mesmo que passe despercebido por quem está ocupado demais escolhendo azeites trufados.

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