A estética como condição da verdade em autoficção


O que faz da autoficção um gênero instável e, ao mesmo tempo, tão característico da sensibilidade contemporânea é a tensão entre duas promessas contraditórias: a de um relato verdadeiro e a de uma obra literária. Emmanuel Carrère, em Ioga, habita exatamente esse intervalo. Ele narra sua vida — não como ela foi, mas como ela pode ser significada por meio da escrita. E é aí que entra a estética: não como ornamento, mas como estrutura da experiência comunicável.

A estética na autoficção não é apenas o “como se conta”, mas o que permite que algo seja contado. Carrère não busca simplesmente relatar fatos; ele busca compor um espaço onde esses fatos possam ressoar para o leitor como experiência. A crueza emocional, os lapsos temporais, a justaposição entre o trivial e o trágico — tudo é filtrado por uma consciência formal. Ele monta o texto como se monta um filme: cortando, encadeando, reencenando. Ao contrário do que supõe o leitor mais ingênuo, a estética não oculta a verdade; ela a torna possível.

Isso coloca a autoficção num lugar paradoxal. Ela promete sinceridade, mas exige artifício. A estrutura, o ritmo, as repetições, os silêncios — tudo isso modela o que será percebido como "autêntico". E por isso Carrère, ao contrário da maioria de seus imitadores, nunca perde de vista que sinceridade e composição são indissociáveis. O leitor é tocado não porque lê um diário cru, mas porque lê uma performance escrita de si — uma performance que reconhece seu próprio artifício.

Se pensarmos com Roland Barthes, podemos dizer que o autor da autoficção é menos um “homem que vive” do que um sujeito que se escreve. E esse sujeito, inevitavelmente, só existe sob a luz da forma. Há uma ética nesse gesto estético: reconhecer que nenhuma lembrança é transparente, que toda memória é mediada pela linguagem, e que toda exposição de si é, antes, uma fabricação. A boa autoficção, portanto, não é aquela que “diz a verdade”, mas aquela que mostra como toda verdade precisa ser dita.

Em suma: na autoficção, estética não é enfeite — é condição da existência literária do eu. Carrère sabe disso, e por isso seu livro não é um desabafo: é um ato formal de revelação construída. É nesse ponto que a autoficção se aproxima mais do romance do que da biografia: não por negar o real, mas por mostrar que o real só se revela quando transfigurado.

Carrère não está sozinho no palco da autoficção contemporânea. Ao seu lado, Annie Ernaux e Karl Ove Knausgård — dois nomes igualmente marcantes — exploram caminhos estéticos próprios para encenar o eu. E o que torna essa comparação fértil é perceber como cada um organiza formalmente o que entende como “verdade”.

Comecemos com Annie Ernaux. Sua escrita é marcada por uma economia quase seca. Não há floreios nem confissões sentimentais: há análise, distância, sociologia do eu. Em livros como O Lugar ou Os Anos, ela escreve contra a ilusão do individual. A estética da Ernaux é, portanto, de apagamento: apagar o estilo subjetivo para que surja a estrutura social. A linguagem, aqui, é instrumento de despersonalização. A primeira pessoa parece sempre constrangida, como se dissesse: “não sou eu que estou falando — é o tempo, é a classe, é o coletivo que fala através de mim”. O “eu” vira um caso empírico. A estética é científica. A verdade está no recuo, não na ênfase.

Já Karl Ove Knausgård, com seu monumental Minha Luta, segue caminho inverso. Sua autoficção é um mergulho brutal e hipertrofiado na experiência cotidiana. Mil páginas para uma tarde, um parágrafo para um pensamento. Knausgård revaloriza a prolixidade, o detalhe exaustivo, o tempo que se arrasta. Sua estética é a da imersão total — como se escrever muito fosse condição para dizer algo verdadeiro. Mas isso também é forma: é o uso do acúmulo como dispositivo. E no fundo, o que se vê é uma encenação do impasse: escrever para tornar-se real, mas nunca escapar da escrita. Como em Carrère, há um gesto metanarrativo: o livro se constrói também sobre o fracasso de representar fielmente a vida.

Carrère, nesse trio, se situa no meio. Nem o distanciamento sociológico de Ernaux, nem o dilúvio de detalhes de Knausgård. Sua escrita performa equilíbrio — entre o íntimo e o literário, entre a confissão e a composição. Em Ioga, isso se revela na escolha dos cortes, na elipse que dramatiza, na inserção de outras vozes (como o breve episódio com William Hurt). Há um senso de cena, de ritmo, de construção de clímax — uma carpintaria quase cinematográfica. É a estética do inacabado encenado. A verdade, aqui, aparece como algo que se tenta alcançar e falha — mas cuja tentativa é construída com precisão formal.

Essa comparação revela que, na autoficção, não há um caminho único para a sinceridade. Há estilos de relação com o eu. E, mais que isso, há uma consciência partilhada: a de que o eu só se torna inteligível — só se torna transmissível — quando moldado por uma estrutura. A estética, portanto, não é um luxo: é a própria matéria da verdade.

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