O Mito do Progresso Encadernado em TCC



Existe uma espécie de nostalgia institucionalizada que tomou conta da cabeça de uma geração – aquela que acreditou que a democracia era um aplicativo que rodava melhor em universidades públicas com Wi-Fi gratuito e copo Stanley na mão. A narrativa é conhecida: começamos no limbo, ascendemos com suor (alheio), despencamos tragicamente e agora caminhamos, mancando, para um novo amanhecer. Tudo isso embalado com hashtags militantes, memes do Lula com Photoshop mal recortado e uma camiseta do Che Guevara que alguém comprou na Renner.

Mas há algo de profundamente teatral – quase pastelão – nessa história. Um tipo de Shakespeare de diretório acadêmico, onde o drama é alto, mas os conflitos são interpretados por atores que nunca saíram do palco circular das plenárias e dos seminários com café queimado. A democracia, para esse grupo, virou um tipo de culto politeísta: adora-se o SUS, o Enem, o Fies, o Bolsa Família. Tudo isso com fé cega, mas pouca disposição para encarar o altar sujo onde o sacrifício é feito. Porque falar de estrutura econômica, claro, é chato. Melhor um carrossel no Instagram com arte vetorial sobre interseccionalidade.

Agora, tentemos escutar as vozes que não estão na bolha progressista de auditório. O que ouvimos? Um silêncio desconfortável, entrecortado por gritos de desespero e risos cínicos. Há quem veja na democracia um teatro distante, cujos aplausos só ecoam de dois em dois anos, como se alguém estivesse assistindo a uma peça da qual não entende a língua. Há quem sinta saudade de um passado que nunca viveu, uma espécie de fantasma da democracia perdida, em que tudo que restou foram urnas eletrônicas e memes do “voto útil”.

A esquerda que ascendeu parece ter confundido “transformação estrutural” com “acesso ao crédito para comprar a primeira lava e seca”. A enchente em Porto Alegre deixou isso claro: a prosperidade distribuída foi mais produto de Casas Bahia do que de reforma agrária. A tão celebrada mobilidade social veio na forma de um financiamento com juros baixos e geladeira duplex. E enquanto isso, os movimentos sociais – aquele coração pulsante de qualquer transformação real – foram pacificados com cargos comissionados, eventos com coffee break e menções em discursos de posse.

Nada disso é propriamente novo. Mas o desconforto vem do fato de que agora parece impossível continuar contando essa história com a mesma empolgação. O verniz está descascando. E o que resta por baixo é uma estrutura montada sobre conciliações incômodas, alianças impronunciáveis e silêncios convenientes. A velha máxima marxista – “os filósofos apenas interpretaram o mundo, o que importa é transformá-lo” – foi trocada por “os influencers interpretaram o algoritmo, o que importa é monetizá-lo”.

A apatia é real. A luta de classes está de licença não-remunerada. E mesmo quem, como o narrador desse relato, promete ser um velhinho inconveniente que cutuca consciências, sabe bem o peso do medo. Medo de ver torturadores virarem nome de rua. Medo de ver a violência institucional ganhar o verniz da legitimidade eleitoral. Medo, principalmente, de que tudo isso – esse teatro em que fingimos transformação enquanto engolimos retrocesso – não seja uma pausa na história, mas o novo normal.

O problema talvez não seja a história que contamos. É o fato de termos acreditado demais nela. Como bons pós-graduandos de uma utopia mal editada, esquecemos que narrativa nenhuma substitui o conflito real. A esperança virou uma pauta, não uma prática. E assim seguimos: formando novas gerações para resistirem a um sistema que aprendemos, com talento, a reproduzir com louvor.

Se o Brasil é o país do futuro, talvez seja porque o presente foi terceirizado para quem sabe usar o Canva.

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.