O Crepúsculo da Crônica e a Morte da Imagem


O Brasil moderno é, em muitos aspectos, uma vitrine vazia: imita formas, mas não entende os conteúdos; repete gestos, mas ignora seus fundamentos. A literatura, como era de se esperar, não escapou ilesa desse processo de autofagia cultural. O que já foi um dos gêneros mais nobres da inteligência nacional — a crônica — hoje se arrasta como um zumbi elegante, com boas intenções e nenhuma força vital. O exemplo mais recente desse fenômeno está no livro A crônica não mata, de Luís Henrique Pellanda.

Não se trata de um livro ruim. Isso seria fácil de dizer. Trata-se, antes, de um livro sintomático: expressão fiel de uma sensibilidade estilhaçada, incapaz de dar forma à experiência, e que faz da impotência uma estética. Diante do caos, o autor não busca compreendê-lo, nem sequer enfrentá-lo; limita-se a registrá-lo. Seu método é o inventário: enumera objetos, cenas mínimas, angústias domésticas — como se a acumulação de fragmentos pudesse gerar, por milagre, uma visão do todo.

Ora, essa estratégia já nasce falida. A arte verdadeira não é o espelho do mundo, mas seu julgamento. O olhar que apenas constata já está vencido. Pellanda, fechado em seu apartamento, transformado em vigia passivo da paisagem, não escreve — anota. E anotar não é escrever. Escrever exige forma, exige pulso, exige um ato de vontade que organize o caos, nem que seja para gritar contra ele. Aqui, ao contrário, temos um litígio não resolvido entre observação e apatia.

A janela, que outrora servia de moldura para o espetáculo urbano — pensemos em João do Rio, com sua perspicácia quase mística — agora serve como limite físico e simbólico da imaginação. O cronista vê o mundo de longe, como quem assiste a uma peça da qual não faz parte. É a condição do exilado em sua própria casa. Mas o exílio, para ter valor literário, precisa de transcendência; do contrário, degenera em diário terapêutico.

O livro, é claro, foi escrito durante a pandemia — esse acontecimento que, ao contrário do que supunham os entusiastas da “nova sensibilidade”, não renovou a arte, apenas agravou suas carências. O isolamento não fez surgir uma nova metafísica da intimidade: apenas escancarou a pobreza de um imaginário já desidratado, dependente da rua como estímulo exterior, e sem reservas interiores que o sustentassem na ausência do mundo. Quando tudo parou, o escritor moderno descobriu que não tinha para onde correr — nem dentro de si.

O estilo fragmentado de Pellanda — listas, aforismos, frases soltas como quem joga búzios — reflete essa crise. Mas aqui é preciso cuidado: não devemos confundir fragmentação com modernidade, nem esvaziamento com minimalismo. O que se vê, neste livro, é o triunfo de uma estética do esfarelamento: a linguagem já não serve para iluminar, apenas para sobreviver ao escuro.

A insistência no título — “a crônica não mata” — é uma espécie de mantra melancólico, repetido ao longo da obra com uma resignação que se confunde com derrota. A intenção parece nobre: reconhecer os limites da literatura diante do horror. Mas a literatura que começa por declarar sua impotência já abriu mão de seu dever mais básico, que é o de buscar a verdade. Nem que seja aos tropeços.

Pellanda parece querer, no fundo, dar dignidade à fraqueza — um gesto tipicamente moderno, e perigosamente confortável. Mas a fraqueza só tem dignidade quando resistida, não quando celebrada. O escritor que admite não ter armas deve, pelo menos, desejar tê-las. Caso contrário, não é um escritor — é um cronista do fim do mundo, empilhando frases como quem varre folhas no vento.

Há momentos comoventes, sem dúvida. Uma ou outra cena doméstica, um devaneio noturno, um retorno hesitante à rua. Mas o que falta ao livro é o que falta à cultura brasileira como um todo: hierarquia. Hierarquia entre o essencial e o acessório, entre o trivial e o simbólico, entre a experiência e a forma. Sem isso, a crônica se dissolve, como um rosto apagado na neblina.

Ao final da leitura, o que resta não é indignação nem beleza — mas cansaço. Cansaço de uma literatura que já não ousa dizer, apenas murmura. Que já não vê, apenas olha. Que já não escreve, apenas hesita. E que, por fim, já não mata — e nem mesmo fere.

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