O que significa viver? O que significa viver de verdade — e não apenas existir como um item que ocupa espaço em reuniões, consome conteúdo, toma decisões por meio de checklists e entrega tudo no prazo? Há uma diferença abissal, e essa diferença, ainda que sutil, é a mais decisiva entre todas: a vida que se fecha e a vida que se abre. Aquela que reduz tudo ao já sabido e aquela que, mesmo diante daquilo que se crê saber, guarda espaço para o inesperado. É isso o que chamo aqui, para emprestar a linguagem do texto que me serve de partida, de “vida como aventura”.
A aventura, neste contexto, não é a peripécia exterior, o risco físico, ou a contação de histórias saborosas para animar festas. É, antes, uma atitude ontológica — uma maneira de estar no mundo. E o que essa atitude pressupõe é algo que se tem tornado cada vez mais raro: a disposição de não saber exatamente onde se está indo, e ainda assim ir. É o gesto de dar um passo não apenas sem ter todas as garantias, mas muitas vezes justamente porque não se tem garantias — e é esse passo que engendra conhecimento, que revela sentido, que desvela o próprio sujeito em sua relação com o mundo.
Vivemos hoje sob o império da orientação. Queremos saber o que fazer, o que ler, como pensar, quais são os top 10 hábitos dos gênios criativos, quais são os argumentos certos para vencer debates nas redes sociais. Isso não é exatamente novo — o desejo de mapa é tão antigo quanto o impulso de viagem —, mas parece que hoje o mapa substituiu a viagem. Vivemos a época da anti-experiência: a vida prefigurada em tutoriais, a sabedoria encapsulada em cortes de 30 segundos, o sentido entregue em mãos, como um delivery ontológico.
Acredito que o que se perdeu aí não é apenas uma forma de viver, mas o próprio contato com o real. Porque o real, por definição, é aquilo que não cabe no nosso esquema. O real resiste à simplificação, escapa aos bullets, transborda as molduras das apresentações e manuais. O real é justamente o que impõe o trabalho da experiência, o embate com o incerto. E o incerto é insuportável para uma consciência que não tolera a própria insuficiência.
Mas a insuficiência não é defeito — é ponto de partida. Toda aventura começa quando se admite não saber. O início do pensamento filosófico, como nos ensinava Sócrates, é a confissão da ignorância. Não sei — e é por isso que procuro. O que chamamos de “formação do imaginário” hoje, muitas vezes, é apenas uma maneira sofisticada de negar a procura. Busca-se blindagem, não abertura. Busca-se a formação do eu como um bastião fortificado, não como um campo em movimento.
A aventura, nesse sentido, é o que desarma. É aquilo que, ao invés de oferecer um resultado, abre um processo. É o que permite ser afetado por um livro, por uma paisagem, por uma conversa banal no ônibus. É o que permite não sair de casa com um destino certo, mas com uma disposição certa: a disposição de estar disponível ao que venha. O que os antigos chamavam de “flanar” é um ato de presença e de atenção — não é vagabundagem, mas vigilância radical. É a recusa de instrumentalizar a realidade segundo fins predefinidos.
E é essa recusa que hoje parece heresia.
Vivemos na era do resultado. Tudo precisa ser quantificável, produtivo, otimizado. A leitura precisa “servir” para algo. A conversa precisa ter um call to action. O texto precisa entregar um “valor”. O tempo livre precisa se transformar em tempo de performance. E até o amor precisa ser “inteligente”, com técnicas de “comunicação não violenta”, de “linguagens do amor” e toda uma gama de protocolos terapêuticos que domesticam o mistério.
Esse mundo não apenas detesta o inesperado — ele o neutraliza. E o faz com precisão clínica. Substitui o assombro pelo dado. A descoberta pelo tutorial. A viagem pelo unboxing. E, sobretudo, substitui o sentido pela utilidade.
Ora, sentido não se entrega como um brinde. Sentido é aquilo que se revela, e só se revela a quem suporta não saber o que está procurando. Sentido é como o gosto da água de uma torneira estrangeira: está ali o tempo todo, mas só se nota quando se muda de paisagem. Só se percebe o cheiro da terra natal quando se respira o ar de outro lugar. Só se entende a luz da infância quando se olha para trás com os olhos marcados pela experiência.
Por isso a vida como aventura exige uma postura contemplativa — e não há contemplação sem o tempo dilatado do processo. Tudo aquilo que nos forma de verdade nos toma tempo. Não há leitura transformadora na leitura apressada. Não há maturidade sem erro, sem hesitação, sem reconciliação com o fato de que o mundo é muito maior do que qualquer esquema, teoria ou método.
A vida como aventura também rejeita o modelo do mestre-magro-de-sobrancelhas-grossas que promete “ensinar X para você virar eu”. Isso é paródia do sagrado. O verdadeiro mestre não dá fórmulas: ele aponta abismos. Ele não diz “faça isso”, mas pergunta “você já olhou isso?”. Ele não entrega atalhos — ele evoca o esforço. É mais Hermes do que Prometeu, mais dançarino do que engenheiro.
E o mais irônico, como já foi bem observado, é que ao perdermos a aventura, começamos a falar dela de maneira compulsiva. A jornada do herói virou planilha. A ancestralidade, marketing. O mistério, recurso narrativo. O encantamento, storytelling. E tudo isso a serviço de um objetivo que já está definido: performar, influenciar, ganhar, vencer, subir, converter, escalar. A aventura virou etapa de funil.
Mas o real não cabe no funil.
Por isso insisto: recuperar a vida como aventura não é nostalgia, nem rebeldia romântica. É uma questão de sobrevivência espiritual. É, talvez, o último gesto de liberdade que ainda nos resta: não saber o que vai acontecer, e ir assim mesmo. Ir não para vencer, mas para ver. Não para convencer, mas para compreender. Não para simplificar, mas para suportar a complexidade.
Afinal, como dizia Antonio Machado, “caminhante, não há caminho — o caminho se faz ao andar”. E se faz mesmo quando erramos, tropeçamos, desistimos e voltamos. Porque o sentido não está no ponto de chegada, mas no modo como se caminha. A aventura, portanto, não é o que se conta no fim da vida — é o que nos impede de virar espectadores da nossa própria biografia.
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