Nada se dissolve mais rápido que a crença de que pensar, por si só, transforma o mundo. Nascemos na ressaca de um país interrompido, entre planos econômicos com nome de ave e presidentes depostos por falta de decoro ou excesso de arrogância. Fomos ensinados, nas universidades, que compreender é resistir — e muitos de nós acreditamos nisso como quem agarra uma tábua no meio do naufrágio.
Mas havia uma armadilha nessa promessa. A proliferação de discursos, de teses, de corpos teóricos cada vez mais sofisticados e autorreferentes, longe de nos tornar agentes de transformação, pareceu anestesiar nossa capacidade de sentir o real. Como se, ao descrever a dor com precisão, pudéssemos evitar senti-la. Tornamo-nos especialistas na linguagem da derrota.
A expansão das universidades, as ações afirmativas, o acesso inédito a saberes antes monopolizados por uma elite — tudo isso foi e continua sendo uma vitória concreta. Mas essas conquistas foram recebidas por uma estrutura social exausta, sem imaginação política e com uma classe intelectual mais interessada em garantir prestígio interno do que em falar à sociedade. Sequer falamos entre nós: disputamos.
Ao mesmo tempo, no lado oposto do ringue simbólico, o anti-intelectualismo foi promovido a virtude. O ressentimento encontrou nas redes sociais sua catedral. As ideias perderam espaço para a performance. Pensar virou ofensa.
O mais grave é que muitos de nós, os que insistimos em pensar, começamos a atuar como se estivéssemos apenas escrevendo a crônica de um país que já foi embora. Como se coubesse a nós redigir a nota de falecimento da experiência democrática brasileira, com o capricho de um bibliotecário arrumando fichas antes do incêndio.
Nossas memórias políticas se organizam em marcos, como feridas que cicatrizam tortas: 2013, 2016, 2018, 2022. Datas que não passam. Elas se repetem, zombam de nós. O tempo linear perdeu soberania. Vivemos em ciclos, ou espirais descendentes.
Diante disso, talvez o verdadeiro gesto radical não seja oferecer mais uma análise, mas interromper o fluxo. Silenciar por um instante. Recusar a obrigação de produzir teoria diante da catástrofe. A lucidez, hoje, talvez more num ato quase infantil: lembrar — com imperfeição, com emoção, com febre. Lembrar não para compreender, mas para não trair quem fomos.
Porque, se nada mais resta, que reste ao menos o rastro dos que tentaram. Que alguém no futuro saiba que, entre memes e tanques, havia quem ainda buscasse um modo digno de existir neste país devorado pelo próprio espelho.
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