O Brasil moderno vive um paradoxo crônico: somos, ao mesmo tempo, uma sociedade que avançou e uma civilização que hesita à beira do abismo. Nossa história recente não pode ser contada apenas pelos fracassos acumulados nem tampouco celebrada como uma narrativa de superação contínua. O que temos, de fato, é um país que conquistou muito — mas compreendeu pouco o que isso significa.
Nas últimas décadas, sobrevivemos à inflação descontrolada, estabilizamos a moeda, ampliamos o acesso ao ensino superior, garantimos políticas de inclusão racial, criamos mecanismos de proteção social minimamente eficazes. Muitos jovens negros, mulheres periféricas, pessoas antes invisibilizadas pela máquina estatal, puderam, enfim, acessar lugares historicamente negados. Tudo isso importa. Mas o Brasil é também o país onde essas mesmas conquistas são diluídas pela inércia institucional, por ciclos de escândalos, por uma elite política que se retroalimenta do caos que finge combater.
Não é possível escrever sobre o Brasil contemporâneo sem reconhecer os sinais de avanço civilizacional — mas tampouco é honesto ignorar que esses avanços ocorrem numa estrutura podre, montada sobre a areia movediça de um Estado desarticulado, de uma economia instável e de uma cultura política impregnada por ressentimento e simulações morais.
Nos anos 2000, falar de “desenvolvimento” ainda carregava um certo vigor. Nas universidades, os seminários e grupos de pesquisa apontavam para possibilidades reais de transformação. Hoje, esse vocabulário é ridicularizado como coisa de velho. Termos como “igualdade” ou “pacto social” são recebidos com desdém ou convertidos em memes — não porque perderam valor, mas porque perdemos a capacidade de sustentá-los com seriedade.
Os jovens da era digital vivem uma contradição tocante: são politicamente engajados como talvez nenhuma geração anterior foi, e ao mesmo tempo, frágeis diante do peso da realidade. A consciência de desigualdade racial, de violência de gênero, de estruturas históricas de dominação é valiosa — mas muitas vezes convertida em instrumento de disputa simbólica, onde a experiência vivida parece valer mais que a verdade objetiva. A “luta identitária” trouxe visibilidade e poder a muitos, mas também fragmentou o debate público, tornando-o incapaz de formular projetos comuns.
Nos acostumamos, como sociedade, a nos mover de crise em crise. A política virou espetáculo e a crítica, performance. A inteligência coletiva se perdeu num mar de diagnósticos brilhantes e ações pífias. Formamos uma geração inteira de analistas da conjuntura que sabem dissecar o corpo da nação com precisão cirúrgica, mas hesitam na hora de reanimá-lo.
Não se trata de desdenhar a academia, os ativismos ou as narrativas que emergiram dos lugares antes calados. Muito pelo contrário. Foram essas vozes que romperam o silêncio histórico de séculos. Mas o que se vê, com frequência, é que essas conquistas foram sequestradas por um narcisismo discursivo, onde cada erro vira heresia e cada nuance é suspeita de traição.
A esquerda se vê às voltas com sua própria multiplicação interna — fraturada entre a necessidade de construir maioria política e o imperativo moral de manter a pureza identitária. Já a direita, por sua vez, prefere o colapso a qualquer convívio com a complexidade. Uma escolhe o isolamento; a outra, o cinismo.
A tragédia brasileira não está na falta de ideias. Está no excesso delas — e na ausência de uma força moral comum que as una em algo mais do que táticas de curto prazo. Temos diagnósticos refinados, pesquisas densas, análises competentes. Mas, como numa peça kafkiana, esse saber se dissocia da ação concreta, como se a realidade fosse sempre uma peça que se escreve depois do fim.
Em meio a tudo isso, resta ao intelectual não a soberba do analista — mas a humildade do arquivista. Resta a quem escreve a tarefa de guardar não só as glórias e as desgraças, mas também as zonas de silêncio, os gestos ambíguos, as experiências que não cabem nos relatórios de pesquisa.
Talvez, daqui a décadas, historiadores consigam fazer sentido dessa babel teórica e dessa torrente de disputas simbólicas. Por ora, nossa missão não é julgar o presente como se dele estivéssemos fora — mas habitar essa bagunça com alguma lucidez, alguma ternura e alguma memória. E, quem sabe, recuperar a antiga, quase esquecida, arte de pensar o Brasil como um projeto coletivo, e não como uma arena de vaidades moralizantes.
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