A primeira vez que ouvi um redator publicitário falar sobre comportamento de consumo foi numa sala envidraçada na Vila Olímpia, em São Paulo, numa manhã abafada de novembro de 2014. Do lado de fora, o trânsito se arrastava como uma promessa quebrada. Do lado de dentro, homens e mulheres de jeans escuros e camisetas com slogans criativos circulavam com pressa entre puffs coloridos e paredes cheias de post-its. A sala cheirava a café de cápsula e ansiedade.
O homem que falava — Marcos G., diretor de criação da agência responsável pela última campanha do Itaú — dissertava com brilho nos olhos sobre algo que chamava de “arquitetura do desejo”. O que ele queria dizer era simples: o trabalho do publicitário não é apenas vender, mas sintonizar a linguagem com aquilo que o brasileiro quer ser — mesmo que ainda não saiba disso.
Passei aquela manhã ouvindo termos como branding emocional, storytelling estratégico, gatilho de pertencimento. E enquanto anotava em meu caderno, percebi algo curioso: aqueles profissionais falavam de sentimentos, mas de um modo clínico, quase cirúrgico. Descreviam a alma humana como quem projeta um infográfico. Ali, onde se deveria encontrar inquietação, havia apenas método.
Publicitários brasileiros, sobretudo depois dos anos 2000, tornaram-se intérpretes ágeis da sensibilidade urbana. Sabem detectar o tom exato que causa identificação em uma mulher que trabalha na Faria Lima e mora sozinha em Pinheiros. Sabem escrever uma linha que comove ao mesmo tempo o entregador de aplicativo e o executivo da Ambev. Seu talento está em condensar o desejo coletivo num slogan que cabe num outdoor da Marginal.
Mas todo esse talento tem um preço: ele nunca é gratuito. Porque o texto nasce com função definida. O redator não escreve para compreender, nem para transformar, mas para atingir. E tudo o que se escreve com esse objetivo nasce com prazo de validade. Um bom texto publicitário é como um pão de queijo de aeroporto: quentinho, conveniente — e esquecido assim que a fome passa.
Conheci escritores paulistanos que viviam em apartamentos antigos na Santa Cecília, e que escreviam à mão, mesmo em 2022. Um deles, com quem conversei por horas no Café Martinelli, acreditava que a literatura ainda era o último lugar onde se podia dizer a verdade sem precisar gritar. Ele dizia que escrever era escutar — mas escutar o que ninguém queria ouvir. A hesitação fazia parte do ofício.
Esse homem não publicava com frequência. Dizia que os editores agora queriam “livros que performassem bem nas redes”. Ria disso. “Literatura não tem engajamento, tem vertigem”, ele disse. E continuou mexendo o café com lentidão, como se palavras mais apressadas atrapalhassem o sabor.
Os bons escritores brasileiros dos últimos anos não foram os que apareceram nas vitrines do shopping, mas os que resistiram à tentação de agradar rápido demais. Escreviam para um leitor que talvez nunca viesse. Ou que só os compreenderia muitos anos depois. Essa escrita, que não se curva à necessidade do agora, é a que permanece.
A linguagem jornalística, por outro lado, começou a escorregar na mesma lógica publicitária. A partir de 2016, talvez antes, os textos nos grandes portais deixaram de narrar acontecimentos para confirmar expectativas. O fato passou a ser um acessório da opinião. E a opinião, uma forma elegante de reafirmar pertencimento.
Repórteres passaram a escrever não mais para entender o Brasil, mas para reforçar o que seus leitores já pensam do Brasil. O jornalismo virou um espelho onde cada bolha vê o que deseja. A apuração deu lugar ao “posicionamento”. E a linguagem, antes ferramenta de descoberta, virou arma de confirmação. Em um país tão desigual, essa mudança não foi apenas editorial — foi ética.
Ezra Pound escreveu que a literatura é “notícia que permanece notícia”. A frase resiste ao tempo porque diz o essencial: o bom texto nasce de algo concreto — um caso, um gesto, um episódio aparentemente banal —, mas se ergue para dizer o que ainda não foi dito sobre aquilo que se repete. O escritor não escreve para dar conta do presente, mas para iluminar o eterno que pulsa no provisório.
Por isso, a boa literatura brasileira — de Lygia Fagundes Telles a Raduan Nassar, de Hilda Hilst a João Antônio — não se dissolve nas semanas. Não se resume num tweet. Não cabe em reels com trilha lo-fi. Ela exige mais: do escritor, o risco de ser mal compreendido; do leitor, a coragem de não desviar o olhar. E dessa tensão nasce o vínculo real.
A diferença entre um bom redator de campanha da Natura e uma escritora como Conceição Evaristo não está na fluência, nem na estética. Está no propósito. O primeiro escreve para reagir ao que está no ar. A segunda, para interrogar o que nunca foi dito. Um é pragmático, outro é essencial. Um deseja a adesão rápida; outro, o silêncio demorado.
Literatura, no Brasil, ainda é uma trincheira. E talvez sempre tenha sido. Enquanto as palavras forem moldadas para satisfazer, a verdade seguirá oculta. Mas enquanto houver quem escreva para desvelar — e quem leia com paciência de quem escava —, a palavra continuará a resistir.
Nem toda frase bem escrita é literatura. Nem toda ideia clara é verdadeira. Mas toda literatura que se sustenta ao tempo tem algo de perigoso: ela nos força a ver o que não queremos. E, ao fazer isso, ela permanece.
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