Entre a estação da Luz e a sombra do bairro


Carta aberta a um jovem estudante de letras


Querido Miguel,

Li sua carta — e antes que eu responda qualquer coisa, precisei me sentar em silêncio. Às vezes, a resposta precisa nascer mais da escuta do que da palavra.

Estarei em São Paulo entre os dias 4 e 27 de agosto, por conta das aulas do doutorado em Literatura e Crítica Literária na PUC. Se estiver livre, marcamos algo — um café, uma caminhada, talvez só um banco numa praça onde o vento sussurre palavras que não couberam no e-mail. Seria bom revê-lo, ver com os olhos o que agora escutei com os olhos.

Você me pergunta como estou. Eu te conto sem rodeios: meu pai morreu.

Escrevi sobre isso, talvez para não esquecer que ele existiu. Talvez para me lembrar de que existo eu também. Está aqui, aqui e aqui. Três textos, mas nenhum deles é suficiente. Porque, no fundo, toda perda é mal escrita — mesmo a que fazemos com esmero. Mesmo a que tentamos transformar em literatura.

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O que você me conta sobre o bairro, sobre Santo André, sobre o túnel imaginário que divide a cidade pequena da cidade grande, me lembrou algo que Ferrante nunca escreve diretamente, mas que está ali, em cada sílaba que Lenu pronuncia com vergonha: o mundo da linguagem é também o mundo da exclusão.

A vergonha do próprio vocabulário, do próprio “r” — isso, meu caro, não é pequeno. É o centro da narrativa da tetralogia. Quando Lenu sobe a escada da escola para ler um texto e tenta esconder o sotaque, ela não quer apenas parecer culta — ela quer ser aceita pelo país que não a quer. O país, a universidade, o mercado editorial, o marido, os críticos. Todos esses circuitos sociais que dizem: “seja outra”.

Mas há uma diferença entre Lenu e você. Ela se ilude com a aceitação. Você sabe que a cidade grande é apenas um cenário. E que às vezes, mesmo sendo bom, ele pode não ser suficiente para dar abrigo.

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Você diz que teme a mudança. Que quer manter um dedinho em casa. Que sente que a casa já não te pertence. Que a cidade é grande demais, que você talvez não seja dela.

Isso é crescer.

Aos dezenove, São Paulo sempre parece um monstro. Aos vinte e nove, ela ainda é. Mas você aprende a dançar com ele. Aprende, talvez, que o concreto não engole: apenas testa seu equilíbrio.

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Sobre Ferrante — sim, quero conversar contigo. Muito. A tetralogia é um território que relê a ideia de identidade a partir da tensão entre visibilidade e desaparecimento. Um dos textos mais belos que li sobre ela é da Rachel Donadio, no New York Times (aqui), e também o de Elaine Nathani Medeiros DantasJoão Pedro Wizniewsky Amaral, que fala sobre a escrita de Ferrante como elaboração dos traumas (aqui). Há também Elissa Schappell, que percebe como a raiva é um motor de consciência feminina na obra (aqui). 

Você me pergunta: existe algo tão bom quanto Ferrante?

Existe. Mas depende da fome. Clarice pode ser mais cortante. Natalia Ginzburg mais seca e desoladora. Annie Ernaux, mais implacável. A Place for Us, da Fatima Farheen Mirza, se quiser chorar de novo. Vida e Destino, de Vassili Grossman, se quiser mergulhar num oceano sem fim.

Mas o que talvez você procure — e isso li nas entrelinhas — é um livro que o obrigue a se ver. Que o empurre a se despir do personagem que você acha que precisa ser.

Talvez a literatura mais necessária nesse momento da sua vida seja aquela que lhe devolve a própria voz. Mesmo que gagueje, mesmo que venha com palavrões, mesmo que soe como Santo André. Mesmo que soe como verdade.

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Não, você não é tolo. E, se me permite, não seja tão duro consigo mesmo. Há uma beleza honesta no seu texto — e honestidade, hoje, é luxo.

Obrigado por me escrever. E por confiar em mim.

Nos vemos logo,

Com carinho,

J. Fagner

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