Entre o Irrepresentável e o Irremediável: A Morte do Pai, o Pensamento Mágico e o Instante de Morte
A literatura, em seus momentos mais altos, revela aquilo que o pensamento filosófico muitas vezes apenas contorna: a experiência do inominável, o que se oculta na dobra entre a vida e a morte, entre a perda e a linguagem. Quando Maurice Blanchot escreve O instante da minha morte, e Dostoiévski relata o abismo do fuzilamento iminente, o que emerge é menos um relato do que uma fratura – um intervalo no tempo onde o sujeito é suspenso entre a vida e o seu fim, e onde a linguagem tenta, como pode, manter a dignidade de dizer aquilo que não pode ser dito.
Não se trata aqui de fazer um mero paralelismo temático entre experiências de quase-morte, mas de observar como esse "instante impossível", como o chamou Derrida, funda uma ética da escritura, uma posição diante do mundo em que o escritor, longe de ser apenas aquele que narra, torna-se aquele que é narrado por um acontecimento que o excede. Blanchot e Dostoiévski não apenas sobreviveram – foram condenados a sobreviver, e a escrever a partir do escombro desse instante. Cada palavra, depois disso, é um gesto de fidelidade à morte que os tocou e os deixou ir.
Ora, essa mesma fidelidade ao instante impossível – mas desta vez deslocada da cena política ou da condenação penal para o território do íntimo e do familiar – atravessa o monumental ciclo autobiográfico de Karl Ove Knausgård, especialmente em A morte do pai. Ao contrário de Blanchot ou Dostoiévski, Knausgård não escreve sob o signo da suspensão da execução, mas sob o peso de uma morte real e banal – a de seu pai alcoólatra, encontrado morto em uma casa tomada por excrementos e garrafas vazias. E, no entanto, o sentimento que estrutura a narrativa é o mesmo: o fracasso do tempo ordinário, a fratura da cronologia, a incapacidade de representar o real com os instrumentos habituais da linguagem e da memória.
Em Knausgård, o instante da morte do pai é expandido à exaustão em páginas que desnudam o próprio gesto de narrar, exibindo-o como labor e fracasso. “A morte era real. Mas ao mesmo tempo era irreal. [...] Estava lá, mas era como se não estivesse”, escreve ele. O autor nos leva ao ponto em que a linguagem já não é um instrumento de controle, mas um campo de confronto: entre o desejo de compreender e a opacidade absoluta do fim do outro. A morte do pai é menos sobre o pai do que sobre o filho, e menos sobre a morte do pai do que sobre a incapacidade do filho de fazer essa morte caber numa moldura simbólica.
Joan Didion, por sua vez, oferece em O ano do pensamento mágico uma tentativa desesperada de ordenar o real após a morte súbita do marido. A morte aqui não é apenas o desaparecimento de um corpo, mas o desmantelamento de todo um sistema de sentido. Em sua busca obsessiva por explicações e rituais – pelas “formas corretas” de viver o luto –, Didion se vê confrontada não com o absurdo filosófico da morte, mas com a sua vulgaridade brutal, e sobretudo, com a sobrevivência que vem depois. “A vida muda rápido. A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhecia acaba.”
A chave do livro está no termo “pensamento mágico”: a crença infantil, ou desesperada, de que a realidade pode ser revertida por um gesto simbólico, de que o morto pode voltar, de que tudo foi apenas um erro narrativo. Didion relê a experiência do luto não como interioridade psicológica, mas como tensão entre o simbólico e o real. O que a aproxima de Knausgård é justamente o reconhecimento de que o luto, ao contrário do que supõem os manuais de autoajuda, não segue estágios, não se resolve – ele se instala como uma falha na percepção, uma disritmia entre o que se vê, o que se pensa e o que se sente.
O que Dostoiévski, Blanchot, Knausgård e Didion partilham não é uma doutrina, mas uma estrutura de experiência. Neles, o instante da morte – vivida ou testemunhada – impõe à linguagem uma tarefa paradoxal: dizer o indizível, dar forma àquilo que dissolve toda forma. Em Dostoiévski, esse paradoxo se resolve em uma fé trêmula, um misticismo da regeneração pelo sofrimento. Em Blanchot, ele permanece como um buraco negro que puxa toda a linguagem para o centro de sua ausência. Em Knausgård, há uma estetização quase perversa da exposição de si, um esfolamento literário. Em Didion, um requiem racional, quase clínico, mas profundamente comovente em sua impotência.
A morte não comparece como evento, mas como estrutura do vivido. Não como ponto final, mas como dobra. E cada um desses autores, à sua maneira, torna-se testemunha desse instante em que a vida, por um segundo, se descola de si mesma e revela aquilo que sempre esteve lá: que viver é, desde sempre, habitar o intervalo entre o que passa e o que permanece. Escrever, então, é carregar esse instante consigo, como um fardo ou como uma bênção, e recusar a mentira reconfortante de que se pode seguir em frente como antes.
Porque “on voit le soleil”, sim – mas sempre do lado da sombra.
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