No curto e enigmático relato O instante da minha morte, Maurice Blanchot descreve algo profundamente paradoxal: o momento em que um “jovem homem” — talvez ele mesmo, talvez uma ficção de si —, colocado diante do pelotão de fuzilamento, sente uma “espécie de beatitude”. Nada como alívio, tampouco felicidade; mas algo mais leve que o próprio terror. Um sentimento que escapa a toda descrição, porque se situa antes da decisão, antes do disparo, antes do fim — “o passoalém”, diria ele, onde a vida e a morte se tocam, sem se confundir.
Essa “leveza”, que não é euforia nem transcendência, se configura como uma libertação do tempo e do Eu: uma suspensão radical que desorganiza as categorias do vivido. Esse instante é, como disse Derrida, inexperienciável — justamente por não poder ser incorporado à cadeia do sentido. Por isso, Blanchot não tenta narrar o que viveu: ele escreve o que não pôde viver, o que o excedeu. A forma do seu texto reflete isso: fragmentária, quase ausente, ela não oferece uma reconciliação, mas uma ferida ainda aberta.
Joan Didion, por sua vez, se encontra diante de outra espécie de morte: a morte súbita de seu marido, John Gregory Dunne. A experiência não é coletiva nem épica — é doméstica, íntima, silenciosa. Mas nela também há um instante congelado: aquele segundo em que John cai no chão e não volta mais. É a partir daí que ela registra sua própria forma de “leveza”, ou melhor, de descolamento do real. “O pensamento mágico” de Didion — acreditar que ele pode voltar, que o sapato dele deve ficar ali, que ela precisa poupá-lo da cremação — é um modo de negar o fim, de manter a narrativa suspensa, como se o ponto final ainda não tivesse sido escrito.
Em ambos os casos, o sujeito se vê deslocado da própria linguagem: Blanchot porque ela falha em dizer a proximidade da morte; Didion porque ela falha em reparar o dano da perda. Mas enquanto Blanchot permanece imóvel diante do abismo (“Estou vivo. Não, você está morto”), Didion tenta — ainda que fracassadamente — conjurar algum sentido a partir dos fragmentos da vida. Seu livro é uma investigação do tempo fraturado, do real colapsado, mas também uma forma de manter o outro vivo no ato da escrita.
O que os une é essa luta contra o apagamento. Ambos escrevem não para esquecer, mas porque esquecer é impossível. E porque, paradoxalmente, só se pode lembrar daquilo que nos escapa.
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