Choveu no dia seguinte ao enterro. Não uma chuva tempestuosa, mas dessas que parecem sussurrar luto — o céu, só então, parecia ter entendido. Era como se o tempo tivesse lido uma página atrasada de A Morte de Ivan Ilitch e apenas agora percebesse a gravidade da perda.
A ligação veio cedo, a voz de Anatônio — primo do meu pai, agora falecido — deslizou no fio como se não quisesse incomodar. Tínhamos conversado no cemitério, entre olhares úmidos e condolências envergonhadas. Anatônio trabalha atualmente na Fundação Hospitalar de Ipiaú. Havia um computador quebrado, equipamento usado em exames importantes. E alguém precisava resolver aquilo. Ele me chamou, talvez por cortesia ou pela lembrança de que, por anos, eu cuidara de hardware como quem cuida de relojoaria antiga. Mas já não tenho mãos nem tempo para essas tarefas; tampouco vontade.
Levei Francismar. Ele é da área, graduado, competente. Vive de dar aulas, como eu, e o dinheiro extra cairia bem. Como uma dádiva num momento de aperto.
Ao sair de casa, minha mãe descia também. Disse, quase distraída, que ia comprar ração para os cães e depois passaria na casa de dona Rosentina — a Capuchinha — e também na de Ednalva, para tratar de dívidas deixadas pelo falecido. Aquelas que ficam penduradas entre as paredes do luto. Como em Os Buddenbrook, parecia que a herança deixada pelo pai era mais feita de pequenas obrigações do que de bens.
Francismar terminou o conserto com a paciência de quem entende máquinas e silêncios. Resolvi acompanhá-lo até sua casa. Fazia dias que não conversávamos, não desde o enterro. Quis dividir o pagamento comigo. Gentileza sem lógica. Ele fizera todo o serviço. Eu apenas indiquei o caminho.
Em sua casa, a conversa se estendeu para os livros. Tinha comprado alguns para o filho — A Ilíada, A Odisseia, Os Miseráveis, O Senhor das Moscas — e outros para si — O Futuro de Uma Ilusão, O Mal-estar na Civilização, Além do Princípio do Prazer, e A Revolução dos Bichos. Impossível não escorregar para o meu habitual tom professoral. Falei sobre como esses livros haviam moldado minha formação, mencionando, talvez com entusiasmo desproporcional, que ler O Senhor das Moscas pela primeira vez foi como descobrir a selva dentro da civilização. Francismar ouviu, como sempre fazia: quieto, atento, sem julgamento.
Quando voltei, minha mãe ainda não estava em casa. Um peso começou a crescer no peito. Pedi a Bartíria que ligasse para Ednalva. Não, ela não estava lá.
Saí de moto. Passei pela casa de Capuchinha, depois pela de Dona Déu — sogra de Anatônio —, nada. O mundo parecia expandir-se em esquinas e ausências. Desci em direção à casa de Anatônio, cruzei o caminho do Ginásio de Esportes. E ali estava ela: minha mãe, firme como sempre, segurando a bicicleta. Dante Vasconcelos Teixeira — filho do artista Floriano Teixeira — bombeava o pneu, concentrado no gesto.
Parei a moto com um gesto indignado, o coração ainda acelerado:
— Não me dê susto!
Ela ergueu os olhos, surpresa:
— O que foi?
— A senhora sumiu. Eu não tinha notícias suas. Já estou com o emocional abalado.
— Tudo bem, vou subindo.
Agradeceu a Dante, subiu na bicicleta e se foi, sem pressa. Dante comentou algo sobre a revista em quadrinhos que emprestei — a primeira edição de Mister No: Revolução —. Pedi que aparecesse quando quisesse. Segui. Ainda passei na casa de Capuchinha para ajudar minha mãe com umas coisas. Pequenas tarefas, como quem costura o dia. E assim o cotidiano ia, feito um conto de Tchékhov: simples, breve, mas com algo invisível e pesado pairando sobre tudo.
Ela ergueu os olhos, surpresa:
— O que foi?
— A senhora sumiu. Eu não tinha notícias suas. Já estou com o emocional abalado.
— Tudo bem, vou subindo.
Agradeceu a Dante, subiu na bicicleta e se foi, sem pressa. Dante comentou algo sobre a revista em quadrinhos que emprestei — a primeira edição de Mister No: Revolução —. Pedi que aparecesse quando quisesse. Segui. Ainda passei na casa de Capuchinha para ajudar minha mãe com umas coisas. Pequenas tarefas, como quem costura o dia. E assim o cotidiano ia, feito um conto de Tchékhov: simples, breve, mas com algo invisível e pesado pairando sobre tudo.
O problema é que crescemos num mundo de espelhos reluzentes, onde só se reflete o sucesso, a potência, a vitória escancarada. Nos preparamos para subir, mas nunca para parar — e muito menos para cair. Somos ensinados a andar rápido, dormir pouco, sorrir sempre. Ninguém diz o que fazer quando o que nos resta é um copo de água na mão e nenhuma vontade de bebê-lo.
Essa pressa para ser feliz o tempo todo constrói uma mentira: a de que somos infinitos, indestrutíveis. Alguns até sonham com corpos duradouros, cérebros eternamente jovens, como se a medicina fosse um feiticeiro capaz de adiar o inevitável. Mas há um ponto em que o corpo se recusa a continuar, e a alma, por mais treinada que esteja, fraqueja. E nisso há beleza. Há um aprendizado que mora no fim das coisas — mas só se a gente deixar o fim falar.
Lembro de outra leitura sobre um enterro em Takoradi, Gana. Carregavam o caixão como se fosse um altar dançante, com cantos altos e passos largos. Havia lágrimas, sim, mas elas vinham misturadas a riso e gratidão. Celebravam o que foi, não apenas o que se perdeu. Também ouvi falar de um povo nos confins do Xingu que, ao despedir-se dos seus, partilha uma refeição com misturadas a pequenas porções das cinzas do falecido — não por morbidez, mas para que o corpo sinta o adeus, para que a dor seja matéria, não fantasma.
Acho que o luto precisa de gesto. Não basta o silêncio. Nem o travesseiro molhado. É preciso inventar uma forma — um vestido azul, um canto antigo, um prato com sabor de lembrança — para que a ausência não se transforme em buraco. Que ela tenha bordas. E nome.
O que me falta?, O que faço com isso que perdi?, Com quem posso dividir esse peso?. Filosofia, se tem serventia, é essa: ensinar a chorar sem vergonha, e a seguir mesmo quando o chão não parece confiável.
Porque fingir que não dói é como conversar com um espelho — e esperar que ele responda.
A tarde parecia suspensa, como se o tempo caminhasse sobre almofadas. Recebemos a visita de Valdirene e seu menino, Ravi. Eles chegaram com olhos úmidos e gestos contidos, daqueles que sabem que a presença pode consolar mais que qualquer palavra. Os abraços duraram um pouco mais que o habitual — talvez por medo de soltar demais.
Conversamos com voz baixa, como quem não quer acordar o passado que repousa em cada canto da casa. Relembramos o domingo anterior, dia 8, um daqueles dias comuns que, em retrospecto, ganham um brilho de presságio. Estávamos todos juntos. Minha mãe, sempre cuidadosa, havia preparado o acarajé. Ele se empanturrou, riu alto, limpou a boca com o guardanapo e disse: “Estou satisfeito.” E aquilo, agora, me soa como uma linha de despedida escrita com feijão fradinho e azeite de dendê quente.
O relógio ia esbarrando nas cinco quando decidi sair. Disse que ia até a padaria da Praça do Cinquentenário buscar pão. Valdirene e Ravi permaneceram com minha mãe. O trânsito na região estava travado, como se até os carros tivessem algo a lamentar. Comprei o pão, um pote de manteiga, e retornei devagar, como quem carrega algo frágil demais para acelerar. Quando cheguei, Valdirene e o menino se despediram e seguiram para casa.
Depois que a porta se fechou e os visitantes sumiram na distância, fiquei sozinho na cozinha. A sacola ainda na mão, o pão ainda quente, a manteiga começando a suar dentro do pote. E ali, de repente, sem aviso, senti: o luto não é ausência, mas transbordo. É quando a lembrança não cabe mais dentro da memória e começa a escorrer pelos olhos, pela garganta.
Ali, no silêncio da casa ainda cheia de cheiros e marcas dele, entendi: luto não é só dor. É também amor acumulado, sem endereço. E tudo que resta a fazer é repartir — em pedaços de pão, em memórias contadas devagar, em receitas repetidas como orações.
Conversamos com voz baixa, como quem não quer acordar o passado que repousa em cada canto da casa. Relembramos o domingo anterior, dia 8, um daqueles dias comuns que, em retrospecto, ganham um brilho de presságio. Estávamos todos juntos. Minha mãe, sempre cuidadosa, havia preparado o acarajé. Ele se empanturrou, riu alto, limpou a boca com o guardanapo e disse: “Estou satisfeito.” E aquilo, agora, me soa como uma linha de despedida escrita com feijão fradinho e azeite de dendê quente.
O relógio ia esbarrando nas cinco quando decidi sair. Disse que ia até a padaria da Praça do Cinquentenário buscar pão. Valdirene e Ravi permaneceram com minha mãe. O trânsito na região estava travado, como se até os carros tivessem algo a lamentar. Comprei o pão, um pote de manteiga, e retornei devagar, como quem carrega algo frágil demais para acelerar. Quando cheguei, Valdirene e o menino se despediram e seguiram para casa.
Depois que a porta se fechou e os visitantes sumiram na distância, fiquei sozinho na cozinha. A sacola ainda na mão, o pão ainda quente, a manteiga começando a suar dentro do pote. E ali, de repente, sem aviso, senti: o luto não é ausência, mas transbordo. É quando a lembrança não cabe mais dentro da memória e começa a escorrer pelos olhos, pela garganta.
Ali, no silêncio da casa ainda cheia de cheiros e marcas dele, entendi: luto não é só dor. É também amor acumulado, sem endereço. E tudo que resta a fazer é repartir — em pedaços de pão, em memórias contadas devagar, em receitas repetidas como orações.
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