O Último Gesto: Literatura, Morte e a Delicadeza de Permanecer


Gostaria de dizer, para fins poéticos, que o cemitério, naquela manhã, parecia engolido por uma névoa sutil que não vinha do tempo, mas de algo anterior, talvez da noite — como se a cidade ainda não tivesse acordado totalmente para a notícia da morte. Mas a verdade é outra.

Era uma manhã de muito calor, do tipo que se anuncia abafada já nas primeiras horas, e que vai se adensando à medida que o tempo passa — como se o próprio dia compartilhasse do peso da ocasião. O sol, implacável, atravessava os tecidos que cobriam os ombros dos presentes, e o suor escorria lento, sem cerimônia, pelas têmporas e nucas. Naquele enterro, como em tantos outros, o calor parecia uma espécie de ironia silenciosa diante da frieza da morte. À medida que o cortejo se aproximava do fim, a sensação era de sufocamento: pela temperatura, pela tristeza, pelas palavras não ditas.

As últimas presenças foram se esvaindo em silêncio. Restaram apenas dois jovens, quase tímidos em seus gestos, como se invadissem um território reservado aos mais velhos: Taislane e Ivan, estudantes de Letras, que haviam ido não por obrigação, mas por um certo pacto afetivo que ultrapassa as convenções acadêmicas.

Juliano, que acompanhara o cortejo até o portão de ferro do cemitério e chegou a entrar, despediu-se com honestidade desarmante: sua mulher o esperava. A vida se impunha, mesmo diante da morte. Giovanna, outra figura breve porém notável, cruzou o velório no limiar de sua rotina – desceu a rua a caminho do trabalho e, por alguns minutos, compartilhou a solenidade dos que pararam.

Houve outros: Arlete, José Carlos, Mônica, Gabriel – nomes que, isolados, talvez não digam muito, mas naquele contexto desenhavam uma rede tênue de solidariedade. Soube depois que a professora Izabel, diretora do departamento, também passara por lá, em algum momento em que eu estava distraído ou ausente. Os gestos foram inesperados. Pequenos, mas profundamente tocantes. E me lembraram, com uma pontada de lucidez melancólica, a delicadeza com que Sigrid Nunez retrata o luto – não como ruptura brutal, mas como uma lenta e contínua surpresa diante do cuidado dos outros.

É coisa notória entre leitores de boa fé que um romance de verdade — aquele que exige do leitor não apenas atenção estética, mas também uma forma de conversão existencial — só se deixa compreender à luz de uma tensão interior irredutível, de uma ferida aberta no espírito. “O amigo”, de Sigrid Nunez, é um desses livros raros que não se prestam a interpretações utilitárias ou moralistas, mas que expõem, com precisão quase cruel, a condição mesma do homem moderno diante da morte, da linguagem e da impossibilidade da comunhão.

Trata-se, externamente, de uma história simples. Um amigo próximo da narradora comete suicídio. Pouco tempo depois, a viúva entra em contato para lhe dizer que o falecido expressara o desejo de que, em caso de alguma eventualidade, ela cuidasse de seu dogue alemão. A partir daí, o que parecia ser um gesto de generosidade se converte, nas mãos de Nunez, num labirinto moral, emocional e metafísico. A narradora, constrangida pela presença do cão gigantesco num apartamento minúsculo de Nova York — e ameaçada de despejo, já que o prédio não permite animais —, começa a ruminar as razões ocultas daquele pedido. Por que ela? Por que não uma das três ex-mulheres? O que começa como anedota doméstica logo se transforma numa sondagem do inefável: da opacidade da alma humana, da precariedade dos vínculos, da mentira embutida na linguagem da intimidade. Mas o centro de gravidade do livro, seu eixo invisível, é o luto — não o luto como ritual, mas como estado metafísico.

É claro que o cão também não está ali por acaso. Nada no romance está. Nunez compreende, como poucos, que os animais nos revelam precisamente o limite do nosso conhecimento do outro. O leitor mais atento verá que, entre as linhas do livro, espreita a velha questão platônica: é possível conhecer a alma de um ser que não fala — ou cuja fala, como no caso dos humanos, talvez seja mais véu que revelação? E assim, entre silêncios caninos e memórias interrompidas, a narradora é compelida a revisitar a própria relação com o morto — esse amigo cuja ausência se impõe como um novo tipo de presença, terrível e inelutável.

É inevitável: à medida que a vida se prolonga, o véu das ilusões juvenis se rasga, e nos deparamos com o rosto nu da realidade — a morte, o luto, o abandono. Não se trata de pessimismo: é apenas maturidade. Nunez, talvez sem querer, mas não por acaso, toca nesse nervo exposto da existência com um estilo que se aproxima do que chamo de inteligência da melancolia — uma lucidez desconfortável, mas imprescindível.

A figura da mãe, tal como descrita por Nunez em sua memória, resume com perfeição esse dilema: uma mulher infeliz, sufocante, mas dona de uma beleza que perturbava e de um senso de humor que florescia no meio do naufrágio. Tal combinação — a amargura da vida doméstica e a graça sardônica diante da desgraça — lembra aquelas figuras trágico-cômicas de Tchekhov ou de Nelson Rodrigues: gente que ri com um pé no abismo.

Mas mais impressionante ainda é o papel que essa mulher desempenha como sacerdotisa informal dos animais feridos do bairro. Há uma imagem profundamente arquetípica aí: a bruxa do conto de fadas, a mulher-loba que fala a língua dos bichos. Não é mera excentricidade. Há um simbolismo profundo no fato de que, numa época em que os vínculos humanos se desfazem com a rapidez de um clique, ainda se cultive, mesmo inconscientemente, a fidelidade silenciosa dos animais.

Nunez herda isso. E por isso sua prosa, embora aparentemente discreta, causa um incômodo persistente. Não por ser chocante — mas por ser verdadeira. A relação entre a narradora e o animal não é um capricho sentimental: é um símbolo da tentativa de manter alguma centelha de sentido no mundo do colapso.

Vivian Gornick, crítica de timbre respeitável, acertou ao apontar que a força de Nunez está menos na trama e mais na “inteligência senciente” da narradora — e é precisamente esse o ponto que escapa aos leitores treinados apenas pela pedagogia do entretenimento. O que Nunez faz é colocar em cena uma consciência que pensa, que julga, que se angustia — em vez de uma vítima muda dos acontecimentos. Há, nesse tipo de prosa, uma herança quase esquecida dos moralistas franceses e da autobiografia filosófica que o modernismo americano enterrou sob montanhas de experimentalismo estéril.

E qual é o tema por excelência dessa consciência? A morte, claro. Mas não a morte como evento, e sim como horizonte. A narradora sabe que o cachorro envelhece, que a morte do amigo a persegue como um espelho escuro, e que todo o gesto de amor é também uma preparação para a perda. E, no entanto, insiste em cuidar do cão — não porque acredita em ilusões, mas porque compreende que o amor é uma espécie de resistência à desintegração.

Essa obsessão, como Nunez mesma admite, não é mórbida: é simplesmente humana. A morte não é uma anomalia da vida — é a sua moldura. Negá-la, ignorá-la, ou substituí-la por slogans de autoajuda não a torna menos real. Ao contrário: torna a vida mais estúpida. Ao escrever sobre isso, ela não se isola do mundo — ela se liga a ele em sua condição mais autêntica. “Se você vive o suficiente, você perde”, diz. E nisso há mais sabedoria do que em milhares de livros de psicologia popular.

Seus romances posteriores aprofundam esse mesmo gesto: em O que você está enfrentando, o pedido de ajuda para uma eutanásia obriga a narradora a encarar os limites da compaixão. Em Os vulneráveis, o confinamento pandêmico e o cuidado de um papagaio se transformam numa espécie de meditação forçada sobre o tempo, a solidão e a fragilidade humana. Tudo isso é feito com sobriedade, sem aquele sentimentalismo vulgar que tantas vezes acompanha temas como esses. Nunez escreve como quem sabe que a elegância é uma forma de decência — e que a decência é o último refúgio da alma num mundo em ruínas.

Pedro Almodóvar — outro artista que, ao chegar à velhice, começou a olhar a vida de frente — adaptou O que você está enfrentando para o cinema, chamando o filme de O quarto ao lado. O nome é apropriado: o quarto ao lado é onde todos estamos, em relação à morte. E, como já dizia Pascal, todo o mal do homem vem de não saber ficar sozinho num quarto. Nunez nos coloca nesse quarto, mas não nos abandona ali. Ela nos oferece, ao menos, a companhia silenciosa de um cão, o riso amargo de uma mãe infeliz, e a palavra honesta de quem pensa — e sente — com profundidade.

Ao deixar o cemitério, já acomodado no carro da minha tia, voltei o olhar, quase por descuido, para a rua estreita que se erguia em direção ao chamado "Cemitério Novo". Foi então que os avistei: Taislane e Ivan, caminhando lado a lado, afastando-se devagar, as silhuetas dissolvendo-se na luz abrasadora da manhã nordestina. Havia naquela cena uma harmonia inesperada — a singeleza do gesto, o silêncio cúmplice, a cadência quase cerimonial dos passos — que me comoveu de maneira imediata e profunda. Eles ignoravam minha presença, e justamente por isso eram autênticos em sua humanidade essencial: apenas caminhavam, simplesmente humanos, sem espetáculo, sem esforço.

E foi ali, nesse instante furtivo, que compreendi algo que palavras costumam deformar: que é nos pequenos gestos, nos atos não ensaiados, que a dignidade humana se revela em sua forma mais pura. Um abraço dado sem testemunhas, uma mão estendida sem pompa, a presença de alguém que permanece mesmo quando não há mais nada a dizer — tudo isso pode reordenar silenciosamente a nossa percepção do mundo. Não como uma epifania grandiosa, mas como uma brisa que limpa o ar após uma tarde abafada.

Aquela visão fugaz me reconectou, por um fio invisível, a algo que a dor parecia ter rompido: a esperança. Não a esperança ingênua que espera o impossível, mas aquela que reconhece a beleza do que resiste em meio ao fim — o gesto de consolo, o andar conjunto, o respeito calado. Ao ver Taislane e Ivan seguirem adiante, compreendi que, apesar de todas as perdas, a humanidade ainda pode se insinuar nos interstícios da morte — e que, às vezes, basta isso para que a vida siga tendo sentido.

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