Gostaria de dizer, para fins poéticos, que o cemitério, naquela manhã, parecia engolido por uma névoa sutil que não vinha do tempo, mas de algo anterior, talvez da noite — como se a cidade ainda não tivesse acordado totalmente para a notícia da morte. Mas a verdade é outra.
Era uma manhã de muito calor, do tipo que se anuncia abafada já nas primeiras horas, e que vai se adensando à medida que o tempo passa — como se o próprio dia compartilhasse do peso da ocasião. O sol, implacável, atravessava os tecidos que cobriam os ombros dos presentes, e o suor escorria lento, sem cerimônia, pelas têmporas e nucas. Naquele enterro, como em tantos outros, o calor parecia uma espécie de ironia silenciosa diante da frieza da morte. À medida que o cortejo se aproximava do fim, a sensação era de sufocamento: pela temperatura, pela tristeza, pelas palavras não ditas.
Ao deixar o cemitério, já acomodado no carro da minha tia, voltei o olhar, quase por descuido, para a rua estreita que se erguia em direção ao chamado "Cemitério Novo". Foi então que os avistei: Taislane e Ivan, caminhando lado a lado, afastando-se devagar, as silhuetas dissolvendo-se na luz abrasadora da manhã nordestina. Havia naquela cena uma harmonia inesperada — a singeleza do gesto, o silêncio cúmplice, a cadência quase cerimonial dos passos — que me comoveu de maneira imediata e profunda. Eles ignoravam minha presença, e justamente por isso eram autênticos em sua humanidade essencial: apenas caminhavam, simplesmente humanos, sem espetáculo, sem esforço.
E foi ali, nesse instante furtivo, que compreendi algo que palavras costumam deformar: que é nos pequenos gestos, nos atos não ensaiados, que a dignidade humana se revela em sua forma mais pura. Um abraço dado sem testemunhas, uma mão estendida sem pompa, a presença de alguém que permanece mesmo quando não há mais nada a dizer — tudo isso pode reordenar silenciosamente a nossa percepção do mundo. Não como uma epifania grandiosa, mas como uma brisa que limpa o ar após uma tarde abafada.
Aquela visão fugaz me reconectou, por um fio invisível, a algo que a dor parecia ter rompido: a esperança. Não a esperança ingênua que espera o impossível, mas aquela que reconhece a beleza do que resiste em meio ao fim — o gesto de consolo, o andar conjunto, o respeito calado. Ao ver Taislane e Ivan seguirem adiante, compreendi que, apesar de todas as perdas, a humanidade ainda pode se insinuar nos interstícios da morte — e que, às vezes, basta isso para que a vida siga tendo sentido.
As últimas presenças foram se esvaindo em silêncio. Restaram apenas dois jovens, quase tímidos em seus gestos, como se invadissem um território reservado aos mais velhos: Taislane e Ivan, estudantes de Letras, que haviam ido não por obrigação, mas por um certo pacto afetivo que ultrapassa as convenções acadêmicas.
Juliano, que acompanhara o cortejo até o portão de ferro do cemitério e chegou a entrar, despediu-se com honestidade desarmante: sua mulher o esperava. A vida se impunha, mesmo diante da morte. Giovanna, outra figura breve porém notável, cruzou o velório no limiar de sua rotina – desceu a rua a caminho do trabalho e, por alguns minutos, compartilhou a solenidade dos que pararam.
Houve outros: Arlete, José Carlos, Mônica, Gabriel – nomes que, isolados, talvez não digam muito, mas naquele contexto desenhavam uma rede tênue de solidariedade. Soube depois que a professora Izabel, diretora do departamento, também passara por lá, em algum momento em que eu estava distraído ou ausente. Os gestos foram inesperados. Pequenos, mas profundamente tocantes. E me lembraram, com uma pontada de lucidez melancólica, a delicadeza com que Sigrid Nunez retrata o luto – não como ruptura brutal, mas como uma lenta e contínua surpresa diante do cuidado dos outros.
É coisa notória entre leitores de boa fé que um romance de verdade — aquele que exige do leitor não apenas atenção estética, mas também uma forma de conversão existencial — só se deixa compreender à luz de uma tensão interior irredutível, de uma ferida aberta no espírito. “O amigo”, de Sigrid Nunez, é um desses livros raros que não se prestam a interpretações utilitárias ou moralistas, mas que expõem, com precisão quase cruel, a condição mesma do homem moderno diante da morte, da linguagem e da impossibilidade da comunhão.
Trata-se, externamente, de uma história simples. Um amigo próximo da narradora comete suicídio. Pouco tempo depois, a viúva entra em contato para lhe dizer que o falecido expressara o desejo de que, em caso de alguma eventualidade, ela cuidasse de seu dogue alemão. A partir daí, o que parecia ser um gesto de generosidade se converte, nas mãos de Nunez, num labirinto moral, emocional e metafísico. A narradora, constrangida pela presença do cão gigantesco num apartamento minúsculo de Nova York — e ameaçada de despejo, já que o prédio não permite animais —, começa a ruminar as razões ocultas daquele pedido. Por que ela? Por que não uma das três ex-mulheres? O que começa como anedota doméstica logo se transforma numa sondagem do inefável: da opacidade da alma humana, da precariedade dos vínculos, da mentira embutida na linguagem da intimidade. Mas o centro de gravidade do livro, seu eixo invisível, é o luto — não o luto como ritual, mas como estado metafísico.
É claro que o cão também não está ali por acaso. Nada no romance está. Nunez compreende, como poucos, que os animais nos revelam precisamente o limite do nosso conhecimento do outro. O leitor mais atento verá que, entre as linhas do livro, espreita a velha questão platônica: é possível conhecer a alma de um ser que não fala — ou cuja fala, como no caso dos humanos, talvez seja mais véu que revelação? E assim, entre silêncios caninos e memórias interrompidas, a narradora é compelida a revisitar a própria relação com o morto — esse amigo cuja ausência se impõe como um novo tipo de presença, terrível e inelutável.
É inevitável: à medida que a vida se prolonga, o véu das ilusões juvenis se rasga, e nos deparamos com o rosto nu da realidade — a morte, o luto, o abandono. Não se trata de pessimismo: é apenas maturidade. Nunez, talvez sem querer, mas não por acaso, toca nesse nervo exposto da existência com um estilo que se aproxima do que chamo de inteligência da melancolia — uma lucidez desconfortável, mas imprescindível.
A figura da mãe, tal como descrita por Nunez em sua memória, resume com perfeição esse dilema: uma mulher infeliz, sufocante, mas dona de uma beleza que perturbava e de um senso de humor que florescia no meio do naufrágio. Tal combinação — a amargura da vida doméstica e a graça sardônica diante da desgraça — lembra aquelas figuras trágico-cômicas de Tchekhov ou de Nelson Rodrigues: gente que ri com um pé no abismo.
Mas mais impressionante ainda é o papel que essa mulher desempenha como sacerdotisa informal dos animais feridos do bairro. Há uma imagem profundamente arquetípica aí: a bruxa do conto de fadas, a mulher-loba que fala a língua dos bichos. Não é mera excentricidade. Há um simbolismo profundo no fato de que, numa época em que os vínculos humanos se desfazem com a rapidez de um clique, ainda se cultive, mesmo inconscientemente, a fidelidade silenciosa dos animais.
Nunez herda isso. E por isso sua prosa, embora aparentemente discreta, causa um incômodo persistente. Não por ser chocante — mas por ser verdadeira. A relação entre a narradora e o animal não é um capricho sentimental: é um símbolo da tentativa de manter alguma centelha de sentido no mundo do colapso.
Vivian Gornick, crítica de timbre respeitável, acertou ao apontar que a força de Nunez está menos na trama e mais na “inteligência senciente” da narradora — e é precisamente esse o ponto que escapa aos leitores treinados apenas pela pedagogia do entretenimento. O que Nunez faz é colocar em cena uma consciência que pensa, que julga, que se angustia — em vez de uma vítima muda dos acontecimentos. Há, nesse tipo de prosa, uma herança quase esquecida dos moralistas franceses e da autobiografia filosófica que o modernismo americano enterrou sob montanhas de experimentalismo estéril.
E qual é o tema por excelência dessa consciência? A morte, claro. Mas não a morte como evento, e sim como horizonte. A narradora sabe que o cachorro envelhece, que a morte do amigo a persegue como um espelho escuro, e que todo o gesto de amor é também uma preparação para a perda. E, no entanto, insiste em cuidar do cão — não porque acredita em ilusões, mas porque compreende que o amor é uma espécie de resistência à desintegração.
Essa obsessão, como Nunez mesma admite, não é mórbida: é simplesmente humana. A morte não é uma anomalia da vida — é a sua moldura. Negá-la, ignorá-la, ou substituí-la por slogans de autoajuda não a torna menos real. Ao contrário: torna a vida mais estúpida. Ao escrever sobre isso, ela não se isola do mundo — ela se liga a ele em sua condição mais autêntica. “Se você vive o suficiente, você perde”, diz. E nisso há mais sabedoria do que em milhares de livros de psicologia popular.
Seus romances posteriores aprofundam esse mesmo gesto: em O que você está enfrentando, o pedido de ajuda para uma eutanásia obriga a narradora a encarar os limites da compaixão. Em Os vulneráveis, o confinamento pandêmico e o cuidado de um papagaio se transformam numa espécie de meditação forçada sobre o tempo, a solidão e a fragilidade humana. Tudo isso é feito com sobriedade, sem aquele sentimentalismo vulgar que tantas vezes acompanha temas como esses. Nunez escreve como quem sabe que a elegância é uma forma de decência — e que a decência é o último refúgio da alma num mundo em ruínas.
Pedro Almodóvar — outro artista que, ao chegar à velhice, começou a olhar a vida de frente — adaptou O que você está enfrentando para o cinema, chamando o filme de O quarto ao lado. O nome é apropriado: o quarto ao lado é onde todos estamos, em relação à morte. E, como já dizia Pascal, todo o mal do homem vem de não saber ficar sozinho num quarto. Nunez nos coloca nesse quarto, mas não nos abandona ali. Ela nos oferece, ao menos, a companhia silenciosa de um cão, o riso amargo de uma mãe infeliz, e a palavra honesta de quem pensa — e sente — com profundidade.
Juliano, que acompanhara o cortejo até o portão de ferro do cemitério e chegou a entrar, despediu-se com honestidade desarmante: sua mulher o esperava. A vida se impunha, mesmo diante da morte. Giovanna, outra figura breve porém notável, cruzou o velório no limiar de sua rotina – desceu a rua a caminho do trabalho e, por alguns minutos, compartilhou a solenidade dos que pararam.
Houve outros: Arlete, José Carlos, Mônica, Gabriel – nomes que, isolados, talvez não digam muito, mas naquele contexto desenhavam uma rede tênue de solidariedade. Soube depois que a professora Izabel, diretora do departamento, também passara por lá, em algum momento em que eu estava distraído ou ausente. Os gestos foram inesperados. Pequenos, mas profundamente tocantes. E me lembraram, com uma pontada de lucidez melancólica, a delicadeza com que Sigrid Nunez retrata o luto – não como ruptura brutal, mas como uma lenta e contínua surpresa diante do cuidado dos outros.
É coisa notória entre leitores de boa fé que um romance de verdade — aquele que exige do leitor não apenas atenção estética, mas também uma forma de conversão existencial — só se deixa compreender à luz de uma tensão interior irredutível, de uma ferida aberta no espírito. “O amigo”, de Sigrid Nunez, é um desses livros raros que não se prestam a interpretações utilitárias ou moralistas, mas que expõem, com precisão quase cruel, a condição mesma do homem moderno diante da morte, da linguagem e da impossibilidade da comunhão.
Trata-se, externamente, de uma história simples. Um amigo próximo da narradora comete suicídio. Pouco tempo depois, a viúva entra em contato para lhe dizer que o falecido expressara o desejo de que, em caso de alguma eventualidade, ela cuidasse de seu dogue alemão. A partir daí, o que parecia ser um gesto de generosidade se converte, nas mãos de Nunez, num labirinto moral, emocional e metafísico. A narradora, constrangida pela presença do cão gigantesco num apartamento minúsculo de Nova York — e ameaçada de despejo, já que o prédio não permite animais —, começa a ruminar as razões ocultas daquele pedido. Por que ela? Por que não uma das três ex-mulheres? O que começa como anedota doméstica logo se transforma numa sondagem do inefável: da opacidade da alma humana, da precariedade dos vínculos, da mentira embutida na linguagem da intimidade. Mas o centro de gravidade do livro, seu eixo invisível, é o luto — não o luto como ritual, mas como estado metafísico.
É claro que o cão também não está ali por acaso. Nada no romance está. Nunez compreende, como poucos, que os animais nos revelam precisamente o limite do nosso conhecimento do outro. O leitor mais atento verá que, entre as linhas do livro, espreita a velha questão platônica: é possível conhecer a alma de um ser que não fala — ou cuja fala, como no caso dos humanos, talvez seja mais véu que revelação? E assim, entre silêncios caninos e memórias interrompidas, a narradora é compelida a revisitar a própria relação com o morto — esse amigo cuja ausência se impõe como um novo tipo de presença, terrível e inelutável.
É inevitável: à medida que a vida se prolonga, o véu das ilusões juvenis se rasga, e nos deparamos com o rosto nu da realidade — a morte, o luto, o abandono. Não se trata de pessimismo: é apenas maturidade. Nunez, talvez sem querer, mas não por acaso, toca nesse nervo exposto da existência com um estilo que se aproxima do que chamo de inteligência da melancolia — uma lucidez desconfortável, mas imprescindível.
A figura da mãe, tal como descrita por Nunez em sua memória, resume com perfeição esse dilema: uma mulher infeliz, sufocante, mas dona de uma beleza que perturbava e de um senso de humor que florescia no meio do naufrágio. Tal combinação — a amargura da vida doméstica e a graça sardônica diante da desgraça — lembra aquelas figuras trágico-cômicas de Tchekhov ou de Nelson Rodrigues: gente que ri com um pé no abismo.
Mas mais impressionante ainda é o papel que essa mulher desempenha como sacerdotisa informal dos animais feridos do bairro. Há uma imagem profundamente arquetípica aí: a bruxa do conto de fadas, a mulher-loba que fala a língua dos bichos. Não é mera excentricidade. Há um simbolismo profundo no fato de que, numa época em que os vínculos humanos se desfazem com a rapidez de um clique, ainda se cultive, mesmo inconscientemente, a fidelidade silenciosa dos animais.
Nunez herda isso. E por isso sua prosa, embora aparentemente discreta, causa um incômodo persistente. Não por ser chocante — mas por ser verdadeira. A relação entre a narradora e o animal não é um capricho sentimental: é um símbolo da tentativa de manter alguma centelha de sentido no mundo do colapso.
Vivian Gornick, crítica de timbre respeitável, acertou ao apontar que a força de Nunez está menos na trama e mais na “inteligência senciente” da narradora — e é precisamente esse o ponto que escapa aos leitores treinados apenas pela pedagogia do entretenimento. O que Nunez faz é colocar em cena uma consciência que pensa, que julga, que se angustia — em vez de uma vítima muda dos acontecimentos. Há, nesse tipo de prosa, uma herança quase esquecida dos moralistas franceses e da autobiografia filosófica que o modernismo americano enterrou sob montanhas de experimentalismo estéril.
E qual é o tema por excelência dessa consciência? A morte, claro. Mas não a morte como evento, e sim como horizonte. A narradora sabe que o cachorro envelhece, que a morte do amigo a persegue como um espelho escuro, e que todo o gesto de amor é também uma preparação para a perda. E, no entanto, insiste em cuidar do cão — não porque acredita em ilusões, mas porque compreende que o amor é uma espécie de resistência à desintegração.
Essa obsessão, como Nunez mesma admite, não é mórbida: é simplesmente humana. A morte não é uma anomalia da vida — é a sua moldura. Negá-la, ignorá-la, ou substituí-la por slogans de autoajuda não a torna menos real. Ao contrário: torna a vida mais estúpida. Ao escrever sobre isso, ela não se isola do mundo — ela se liga a ele em sua condição mais autêntica. “Se você vive o suficiente, você perde”, diz. E nisso há mais sabedoria do que em milhares de livros de psicologia popular.
Seus romances posteriores aprofundam esse mesmo gesto: em O que você está enfrentando, o pedido de ajuda para uma eutanásia obriga a narradora a encarar os limites da compaixão. Em Os vulneráveis, o confinamento pandêmico e o cuidado de um papagaio se transformam numa espécie de meditação forçada sobre o tempo, a solidão e a fragilidade humana. Tudo isso é feito com sobriedade, sem aquele sentimentalismo vulgar que tantas vezes acompanha temas como esses. Nunez escreve como quem sabe que a elegância é uma forma de decência — e que a decência é o último refúgio da alma num mundo em ruínas.
Pedro Almodóvar — outro artista que, ao chegar à velhice, começou a olhar a vida de frente — adaptou O que você está enfrentando para o cinema, chamando o filme de O quarto ao lado. O nome é apropriado: o quarto ao lado é onde todos estamos, em relação à morte. E, como já dizia Pascal, todo o mal do homem vem de não saber ficar sozinho num quarto. Nunez nos coloca nesse quarto, mas não nos abandona ali. Ela nos oferece, ao menos, a companhia silenciosa de um cão, o riso amargo de uma mãe infeliz, e a palavra honesta de quem pensa — e sente — com profundidade.
E foi ali, nesse instante furtivo, que compreendi algo que palavras costumam deformar: que é nos pequenos gestos, nos atos não ensaiados, que a dignidade humana se revela em sua forma mais pura. Um abraço dado sem testemunhas, uma mão estendida sem pompa, a presença de alguém que permanece mesmo quando não há mais nada a dizer — tudo isso pode reordenar silenciosamente a nossa percepção do mundo. Não como uma epifania grandiosa, mas como uma brisa que limpa o ar após uma tarde abafada.
Aquela visão fugaz me reconectou, por um fio invisível, a algo que a dor parecia ter rompido: a esperança. Não a esperança ingênua que espera o impossível, mas aquela que reconhece a beleza do que resiste em meio ao fim — o gesto de consolo, o andar conjunto, o respeito calado. Ao ver Taislane e Ivan seguirem adiante, compreendi que, apesar de todas as perdas, a humanidade ainda pode se insinuar nos interstícios da morte — e que, às vezes, basta isso para que a vida siga tendo sentido.
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