Na Praça, às Oito e Vinte e Cinco

Edísio e seu cachorrinho Lucky


Ele olhou o celular pela terceira vez. O gesto, mais do que casual, era um sinal claro: o tempo o pressionava. O visor marcava 8h25 da manhã, uma terça-feira comum no calendário, mas nem tanto no coração. Na Praça Antônio Linhares, em Ipiaú, o cenário era quase encantador — mesas e cadeiras plásticas, moldes vazados com temáticas de flores e borboletas sobre panos de prato estendidos. A missão: ensinar senhoras da Universidade Aberta à Terceira Idade (UATI), campus XXI da UNEB, a pintar com moldes vazados. A realidade: as tintas, que deveriam ser acrílicas, eram guache. Escolares. Laváveis. Ou seja, inúteis. Mas não diziam isso a elas. Ainda não.

O pedido por materiais fora feito no início do ano, mas a burocracia é um bicho moroso. Enquanto esperavam, improvisavam. Arlete — determinada, prática, lúcida, como só mulheres que organizam o caos sabem ser — guardara potes e caixas nunca usados, provavelmente herança de algum projeto esquecido em outra gestão. Agora, entre as senhoras, ela transitava com leveza, sabedora de que é a paciência quem garante a sobrevivência de programas como aquele.

Na noite anterior, ele dera aula na disciplina de “Cânones e Contextos da Literatura Portuguesa”. O seminário corria como de costume até que um texto de Saramago provocou uma virada. “Aproveitar o tempo com quem se ama” — dizia o trecho. E então, como se alguém houvesse aberto uma janela para dentro, os alunos começaram a se confessar. Uma estudante contou que a mãe operara em Salvador; por isso, ela faltara duas semanas inteiras. Outro, um homem que não escondia sua ternura pelas raízes, relatou o sofrimento ao ouvir do irmão que, agora casado, sua família era a esposa. Não a mãe. Nem o irmão.

Ele também falou. Falou demais. Uma coisa que vinha fazendo desde que retornara para Ipiaú quase dois anos antes. O tom da aula ficou catártico, confessional. Ao fim, todos estavam emocionalmente exaustos — e, de algum modo, um pouco mais próximos.

Mas ali, sob o céu claro da terça, o clima era outro. Havia até risos. Arlete parecia elétrica, quase saltitante. Andreia, incansável, dava orientações. Oliver, o monitor da UATI, conduzia gravações como quem dirigia um curta documentário sobre afetos invisíveis. Quando lhe passou o microfone, ele disse que aquelas aulas o revigoravam — e era verdade. Sempre saía dali mais leve, com o corpo ainda cansado, mas o ânimo renovado.

Então, o telefone tocou.

Era uma ligação de WhatsApp. Na tela, a foto de Edísio, seu padrasto — um homem sem grandes gestos, mas de presença firme, que o criara desde os oito meses de vida. Atendeu sem pensar. A voz da mãe veio do outro lado, em um atropelo desesperado:

— Filho, Edísio está morto. Está morto!

E a ligação caiu.

Ficou paralisado por um instante. A incredulidade o agarrou pelo ombro. Arlete, percebendo algo estranho, o olhou em silêncio. Ele respondeu:

— Meu pai morreu.

— Como assim? — ela perguntou, já se levantando. Ele saiu correndo para a biblioteca comunitária. Não queria contaminar a manhã ensolarada e as senhoras da terceira idade com a escuridão da notícia.

Ligou de volta. A prima Aline atendeu, voz baixa, quase administrativa:

— Ele está caído. Parece que está morto. Chamamos a SAMU.

Ouviu a mãe dizendo que ela não havia ligado novamente, como quem se justificasse.

Arlete já estava acionando Eliseu e Andreia. A cadeia de cuidado funcionava. Eliseu veio na direção dele:

— Cadê a chave da moto, professor?

— Eu consigo ir pilotando — respondeu, quase automático.

— Não. O senhor vai com Arlete. Eu levo sua moto.

Pegou o capacete, a mochila. Nem sabia se se despediu das alunas. Entrou no carro de Arlete. Ela ligou o motor:

— Onde é?

— Na Invasão.

Ela franziu o cenho. Já subiam a ladeira da antiga feirinha quando comentou:

— Conheço tudo isso aqui, mas sempre chamei de Bairro Euclides Neto.

— É isso mesmo. Mas a gente ainda chama de Invasão, por causa dos conflitos dos anos 70.

A conversa morreu na curva.

Ao chegarem, o carro da SAMU já estava estacionado. De dentro da casa, gritos. A mãe, fora de si. Gente demais. Objetos fora do lugar. Uma confusão doméstica que só a morte sabe fazer. Capuchinha — Rosentina da Silva Cintra — sua avó postiça, mais de noventa anos e um corpo que parecia tecido de algodão, gemia num tom que perfurava tudo. Três agentes da SAMU faziam perguntas.

Arlete tentava consolar Capuchinha. Ele, a mãe. Ela dizia já ter tomado o remédio para arritmia. Ednalva, a irmã do morto, dera a ela um comprimido que depois descobririam ser para diabetes. A mãe nunca fora diabética. Mas quem raciocina em meio ao pânico?

Dr. Eduardo, o médico, disse o que nenhum dos presentes queria ouvir, mas precisava:

— É preciso viver o luto. E, por favor, não deem remédio a ninguém.

Com Andreia, a prima, não a da UATI, ele tentou levar Capuchinha para a casa de seu Deone, o vizinho de mais de quatro décadas. A senhora não aguentava subir escadas. Ele a carregou nos braços, uma imagem que mais tarde pensaria ser simbólica demais para acreditar. Não adiantou. Minutos depois, ela voltava, sentada à cama, sendo amparada por Arlete.

No meio disso tudo, surgiu o cachorro. Lucky. Vira-latas. Companheiro inseparável de Edísio. A mãe queria levá-lo para casa, juntar-se a Pitéu, outro cão — esse um basset mestiço. Pediu a Isack, filho da prima Andreia, que buscasse a ração e as carnes guardadas no congelador. Onde o corpo fora encontrado.

Foi então que soube que fora a própria mãe quem o encontrara. Passara para chamá-lo — ele sempre ajudava nas compras. Estranhou o silêncio. Forçou a porta. Viu o corpo caído. Uma poça de sangue ao redor da cabeça. Achou que escorria do nariz. Mas não. Havia marcas roxas. Estava ali havia horas.

Foi procurar a comida. Subiu com Isack. Esperava não ver nada. Mas viu. A cena, intacta. O corpo caído, o traço da morte ainda presente. A poça. A ausência. O cheiro daquilo que não se nomeia. Lembrou de Knausgård, de seu A Morte do Pai: o impulso de remover o corpo do local da morte é um impulso de autopreservação. A morte não tem dignidade.

Karl Ove Knausgård escreve com a precisão cirúrgica de quem sabe que a dor se revela nos detalhes mais banais: o cheiro, o chão sujo, a posição do corpo. Há algo no modo como ele descreve o ambiente — e não a ausência em si — que nos diz mais sobre a finitude do que qualquer elegia. A morte, para Knausgård, não é uma abstração filosófica ou um símbolo — é um problema logístico. Uma urgência prática. É o que nos obriga a limpar o chão depois do corpo ser removido. Não há nobreza nisso. Apenas necessidade.

Ler Karl Ove é enfrentar o constrangimento de estar vivo ao lado de algo que já não está. E, naquela casa em Ipiaú, o que o atravessou não foi o luto imediato, mas uma espécie de choque com a estética da morte. O corpo ainda estava ali, em breve não estaria, mas tudo o que o cercava permanecia. Como se o falecimento não tivesse sido um evento, mas uma saturação de presença.

Pensou também em Joan Didion, e no modo como ela descreve, em O Ano do Pensamento Mágico, a morte súbita do marido como um gesto sem sentido. "A vida muda em um instante. Você se senta para jantar e a vida como você conhecia acaba." A frase parece simples, mas não é. Ela nos alerta para o fato de que a morte, além de ser um fim, é também uma mudança de narrativa. Um colapso de rotina. E, sobretudo, um problema de linguagem. Porque depois que acontece, tudo o que conseguimos dizer parece insuficiente.

Entre o olhar seco de Knausgård e a dor analítica de Didion, há um campo comum: ambos entendem que a morte não nos exige apenas lágrimas — exige lucidez. E essa lucidez, por vezes, é o que mais machuca. Porque ela aparece no momento em que precisamos continuar. Organizar os pertences. Buscar ração no congelador onde alguém caiu morto. Carregar uma avó idosa enquanto o corpo ainda está quente no quarto ao lado. Continuar, mesmo assim.

É nesse ponto que literatura e vida se tocam: quando o que se escreve parece menor do que aquilo que se sente — e, ainda assim, é a única forma de nomear o silêncio.

Pegou a vasilha. Desceu.

A mãe já se preparava para sair. Sandrinho, marido de Aline, levaria ela e o cachorro. Ele os seguiu na moto. Chegaram juntos em casa. Vizinhos já sabiam. Bartíria. Cristiane. A outra Aline, a agente comunitária.

Eram dez da manhã. O dia mal começara. E a vida já tinha lhe roubado mais um capítulo.

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