Há quem confunda escrita com produção, literatura com performance, estilo com identidade de marca. Esquecem-se — ou talvez nunca tenham descoberto — que escrever é, antes de tudo, escutar. Escutar o quê? A si mesmo? Sim, mas não esse “si mesmo” domesticado pelas redes sociais e pelo narcisismo contemporâneo. Refiro-me ao si mesmo que ainda não está pronto, que se esconde no fundo de uma escuta difícil, quase sempre desconfortável.
E se alguém duvida que a grande literatura nasce desse silêncio radical, basta observar com atenção alguns de seus maiores cultivadores.
- 1. Franz Kafka: o silêncio como angústia metafísica
Kafka não escrevia para o mundo, escrevia contra ele. Seu diário está cheio de passagens onde ele confessa que só conseguia escrever à noite, quando todos dormiam, quando o ruído social cedia espaço ao sussurro do inconsciente. O silêncio em Kafka não era paz, era tensão. Mas uma tensão fecunda. Escrevia sob o peso de um silêncio que mais parecia tribunal — e, ainda assim, foi nesse tribunal noturno que brotaram A Metamorfose e O Processo. A escrita para Kafka era uma forma de ouvir as engrenagens da alma funcionando em segredo.
- 2. Clarice Lispector: o silêncio como gesto místico
Clarice é o exemplo mais puro da escuta radical. Sua literatura não parte de ideias, mas de uma sensibilidade que só poderia nascer da contemplação silenciosa do indizível. A famosa frase de A Paixão Segundo G.H. — “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome” — só pode surgir de quem soube se calar diante da linguagem pronta, da frase pronta, da vida pronta. Clarice escrevia como quem esperava uma revelação — e revelações não gritam, sussurram. Para ouvi-las, é preciso ter feito silêncio por dentro.
- 3. Simone Weil: o silêncio como ascese do pensamento
Filósofa, mística, ensaísta — Simone Weil escrevia como quem orava. Mas não com pieguice ou devaneio. Seu silêncio era rigoroso, disciplinado, quase matemático. Ela sabia que o pensamento só se torna verdadeiro quando cessa o desejo de convencer. Weil acreditava que a atenção — aquela mesma que Valéry exaltava — era a mais alta forma de amor. E amar, no sentido profundo, é calar-se diante do outro. Sua escrita é feita de pausas, de frases exatas, de recusa ao excesso. Há mais verdade num parágrafo seco de Weil do que em muitas páginas entusiasmadas.
Esses três — Kafka, Clarice e Weil — nada têm em comum, exceto uma coisa: sabiam calar. E por isso, souberam dizer. Cada um à sua maneira transformou o silêncio em matéria de linguagem. Não como ornamento espiritual, mas como exigência intelectual.
O escritor medíocre escreve como quem ocupa espaço; o verdadeiro escritor escreve como quem escava. E escavar exige silêncio: não se cava com as mãos cheias de palavras.
Não basta saber o que dizer. É preciso saber quando dizer. E isso só o silêncio ensina.
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