A Acídia dos Mazombos



A civilização moderna é construída sobre a ilusão do progresso. Essa é a grande fé secular do nosso tempo — mais penetrante e inquestionada do que qualquer religião monoteísta. Em nome do progresso, as sociedades sacrificaram tradições, rasgaram vínculos e trocaram a sabedoria local por promessas abstratas. Nenhuma patologia revela mais claramente as rachaduras desse culto do que a acídia — não no sentido medieval, mas em sua manifestação contemporânea: a tristeza melancólica dos que vivem presos entre mundos, incapazes de pertencer a qualquer um deles.

O Brasil, como outros países condenados à condição de eternamente “em desenvolvimento”, é um viveiro dessa aflição. A acídia brasileira, no entanto, é uma variante tropical de um mal mais antigo e mais vasto, conhecido de forma pungente pela aristocracia russa do século XIX — um grupo de senhores de terras que falavam francês e contemplavam a alma russa como um objeto exótico e inferior. Essa classe, muito antes de qualquer globalização, já era cosmopolita em forma e provinciana em essência, e por isso mesmo mergulhada em uma crise espiritual sem solução.

Não é por acaso que tantos intelectuais brasileiros se reconhecem em Herzen ou Tchékhov: são, como eles, mazombos espirituais — filhos bastardos do Iluminismo europeu nascidos em terras onde a razão sempre foi um animal importado e desconfortável. Eles pensam em francês ou inglês, mas vivem em português; alimentam-se de ideias formuladas em Londres, Nova York ou Paris, mas aplicam-nas num solo que nunca se prestou a elas. Estão, como disse Ortega y Gasset de maneira menos brutal do que se merecia, "deslocados": não por opção, mas por condição.

O dilema do mazombo, essa figura meio-casta da modernidade periférica, é o mesmo do homem secular em qualquer parte do mundo. Pois a secularização, longe de libertar os indivíduos da culpa e da salvação, apenas transmutou esses temas em novas linguagens. Hoje, não se busca mais a vida eterna, mas a realização pessoal; não se teme mais o inferno, mas o fracasso; não se espera mais pelo Juízo Final, mas pelo dia em que se terá sucesso, reconhecimento e plenitude — tudo isso garantido não por um Deus, mas pelo mercado, pela psicologia positiva ou pelo algoritmo. A tristeza que acomete o brasileiro de classe média ao rolar o feed não é tão diferente da melancolia do monge medieval ao perceber sua fé vacilante. Ambos vivem o colapso de um horizonte de sentido.

Mas ao contrário do monge, o moderno não reconhece sua tristeza como sintoma de uma perda espiritual. Ele a chama de depressão, esgotamento, falta de foco — e prescreve a si mesmo meditação guiada, viagens ao exterior ou alguma outra solução tecnológica para um problema que é, fundamentalmente, teológico. Pois a acídia, como a compreendia Tomás de Aquino, era a tristeza diante da percepção de que a salvação não viria. O moderno, mesmo tendo abolido a ideia de salvação, sofre da mesma dor: ele também sente que nunca chegará a ser aquilo que prometeu a si mesmo ser. Ele também tem um “inferno”, feito não de fogo, mas de irrelevância.

Nesse aspecto, o brasileiro mazombo, com seu inglês entrecortando o português e seus ideais importados da Nova Zelândia, nada mais é do que um mártir tardio de uma religião morta — a religião do progresso universal. Como seus antepassados russos, ele habita um tempo histórico desajustado: o presente de seu país e o futuro de sua mente estão em permanente desencontro. Ele se movimenta com frenesi, como os revolucionários niilistas de Dostoiévski, mas seu desespero não é político: é metafísico. Ele não acredita mais em Deus, mas também não consegue crer na democracia, no crescimento econômico ou nas promessas da modernidade liberal. Como poderia? Essas promessas não foram feitas para ele.

Talvez, então, a acídia contemporânea não seja um desvio, mas o estado natural do homem moderno. A crença no progresso foi uma anomalia, uma breve chama de fé antes que a noite voltasse. A resignação dos russos diante de sua própria desgraça talvez tenha sido mais sábia do que a esperança brasileira de “chegar lá”. Pois onde exatamente é “lá”? Quem disse que lá é melhor do que aqui? E mais importante: por que deveríamos desejar ser salvos?

As religiões pelo menos tinham a honestidade de reconhecer que a vida é sofrimento e que qualquer promessa de redenção seria misteriosa e incerta. A modernidade, com sua autoajuda disfarçada de ciência social, nos prometeu o céu agora — e, ao fracassar, deixou apenas a ressaca. A acídia, essa tristeza que nasce da esperança falida, é o lembrete de que toda utopia termina em tédio, ou em crueldade. Talvez, como os santos do deserto, devêssemos aprender a não esperar salvação alguma. Isso, pelo menos, seria um começo mais honesto.

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