O Jardim das Cerejeiras e o Cansaço do Mundo



A acídia é uma doença espiritual (psicológica), e como toda doença da alma, ela se manifesta sob disfarces civilizados. No universo de Tchékhov, esse mal se revela não com o barulho de bombas ou revoluções, mas com o silêncio morno de uma floresta esquecida e o som seco de um machado ao longe. O Jardim das Cerejeiras — peça que, de forma pungente, encerra o século XIX — retrata um mundo não apenas em ruína, mas em negação melancólica da própria decadência. É a peça da transição, não apenas de uma classe social, mas de uma visão de mundo — e, como sempre, as transições são encenadas em surdina.

Liuba Raniévskaia, a aristocrata descompromissada, é uma figura que nos convida a refletir sobre o esvaziamento de sentido que caracteriza as elites ocidentais — russas ou não — à medida que seu mundo se aproxima do colapso. Seu apego ao passado é menos uma fidelidade à tradição do que uma forma requintada de recusa. Ela não quer salvar o cerejal. Ela tampouco quer salvá-lo da destruição. Ela simplesmente não quer saber. A cabeça está em Paris, o corpo numa fazenda falida, e a alma… ausente.

A acídia, como os monges da antiguidade sabiam, não é mera preguiça, mas uma desesperança sutil que disfarça seu niilismo com nostalgia. É a sensação de que tudo já foi vivido, de que o presente é uma provação e o futuro, uma irrelevância. O jardim das cerejeiras, com suas flores delicadas, é o símbolo de uma beleza que já não é útil e, por isso, parece não merecer existir. Mas seu destino trágico — ser derrubado para dar lugar a casas de veraneio — não é consequência da necessidade, e sim da falência de imaginação de uma classe incapaz de transformar memória em ação.

Estamos, nós também, num jardim de cerejeiras. Vivemos rodeados por símbolos que já não compreendemos, insistindo em preservar formas vazias de vida enquanto os ventos de mudança sopram — impessoais, implacáveis, indiferentes às nossas hesitações sentimentais. A modernidade tardia que vivemos é uma versão aumentada dessa acídia. Não somos mais assombrados por ideologias totalitárias, mas por um tédio existencial que se fantasia de progresso e inovação.

O banqueiro prático que sugere a venda do cerejal não é um vilão — é o novo mundo que chega, com seus cálculos racionais e seus horizontes rasos. Ele triunfa não porque é forte, mas porque ninguém mais acredita no que o cerejal representava. Quando as ideias morrem, o mundo não termina em chamas — termina em contratos de financiamento e novos loteamentos.

E, ainda assim, há um paradoxo revelador: talvez a única figura que enxerga algo como futuro seja justamente aquele que deseja destruir o jardim. O niilismo dos práticos é ativo, construtor de ruínas. Já o niilismo dos sentimentais é contemplativo, estético, profundamente estéreo. Ambos vivem numa cultura da extração — extração de madeira, de memória, de sentido.

Mas há uma catarse, sim — uma que talvez Tchékhov apenas tenha sugerido. Ela não está na salvação do jardim, tampouco na vitória dos novos senhores. A catarse está no silêncio final da peça, quando se ouve o som distante de uma árvore caindo. É um som de luto, mas também de libertação. O mundo antigo morre não com violência, mas com uma espécie de dignidade vegetal. Aqueles que permanecem — espectadores ou personagens — não têm escolha a não ser ouvir.

O século XXI, com suas promessas recicladas e tecnologias oraculares, também terá de escutar esse som. Pois, para além da decadência e da negação, existe sempre a possibilidade — remota, incômoda — de plantar um novo jardim. Não para reviver o passado, mas para reconhecer, com humildade, que o que se perdeu talvez só tenha valor quando somos capazes de recomeçar sem nostalgia.

Eis, então, o gesto catártico: não lutar para salvar o cerejal, mas aprender com sua queda. A esperança, se houver alguma, não está nas árvores que florescem, mas naqueles que, mesmo após o último machado, permanecem em silêncio e escutam.




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