Kant acreditava que a metafísica tradicional — Deus, liberdade, imortalidade — fracassava por carecer de objeto intuível. Ele estava certo quanto ao fracasso, mas enganou-se quanto à causa. A falência não decorre de um déficit de intuição, mas do próprio apetite humano por transcendência: uma compulsão evolutiva, não uma exigência racional. O homem é o único animal metafísico, como sugere o autor, mas não porque possua um acesso privilegiado ao fundamento do ser. Antes, porque é o único que vive atormentado por abstrações que ultrapassam qualquer mundo que possa habitar.
A análise de que todo objeto, para ser intuído, deve apresentar-se como um feixe articulado de possibilidades e impossibilidades toca num ponto central. Ver um gato é saber, instantaneamente, que ele não voa; intuir um quadrado é reconhecer de imediato as relações geométricas que o estruturam. Essa capacidade não é um sopro divino nem um sinal de um reino platônico; é uma ferramenta adaptativa. O cérebro humano, produto de mutações e contingências, sobreviveu porque conseguiu ler o mundo como um sistema de limites e potências, distinguindo rapidamente entre o possível e o impossível. É por isso que falamos de “objetos” e não apenas de fluxos amorfos de sensação. A objetualidade, longe de ser uma janela para o absoluto, é uma estratégia de sobrevivência.
A história do pensamento ocidental está repleta dessa obsessão com o que transcende a experiência. Desde Parmênides até Hegel, vemos a mesma tentativa: converter o fluxo mutável do mundo num esquema fixo de Necessidade. A metafísica, nesse sentido, não é a ciência dos fundamentos do real, mas a projeção dos anseios humanos por estabilidade num universo indiferente. A própria distinção entre possibilidade e impossibilidade, tão central ao raciocínio do texto, não é uma estrutura do mundo, mas uma função do organismo. O que hoje é impossível — voar como um pássaro — pode amanhã ser corriqueiro, como o demonstram os aviões. As “impossibilidades” são apenas a versão provisória de nossas limitações técnicas e cognitivas.
Os animais não precisam de metafísica. Um corvo reconhece a diferença entre uma presa alcançável e outra inalcançável sem formular conceitos de “possibilidade” e “impossibilidade”. Um leão não se pergunta se a gazela é um “objeto” dotado de um sistema articulado de potências; ele apenas caça ou desiste. Só o homem, incapaz de tolerar a contingência, transforma sua habilidade de discriminar regularidades em uma doutrina sobre os alicerces do ser. Chamamos a isso “ciência primeira”, quando não passa de mais uma narrativa que mascara a nossa vulnerabilidade.
A ideia de que a metafísica é necessária porque sem ela não haveria ciência ignora um fato elementar: a ciência prospera justamente quando abandona qualquer pretensão de tocar o absoluto. O método científico não busca “fundamentos últimos”, mas padrões úteis, provisórios, sempre prontos para serem descartados. O que chamamos de leis são apenas hábitos do mundo enquanto nossos instrumentos os percebem. Se a gravidade um dia deixasse de operar, nada no cosmos a traria de volta por obediência a uma “necessidade”. A natureza não tem compromissos com nossas distinções entre o possível e o impossível.
Na verdade, a noção de impossibilidade absoluta é uma superstição disfarçada de racionalidade. O que parecia impossível para Aristóteles — que o vácuo existisse, que a Terra não fosse o centro do universo — tornou-se trivial. O que hoje tomamos por limites invioláveis pode, amanhã, dissolver-se, seja por uma inovação técnica, seja por uma mutação do próprio mundo. O universo não reconhece categorias humanas. Ele não é lógico, nem ilógico; apenas é.
A insistência em fundar o conhecimento numa metafísica revela mais sobre os medos humanos do que sobre a estrutura da realidade. Somos a única espécie que sabe que vai morrer. E, incapazes de aceitar a indiferença do cosmos, criamos sistemas — religiosos, filosóficos, científicos — que prometem que, ao menos em nível conceitual, habitamos uma ordem inteligível. A metafísica é apenas a versão mais sofisticada dessa recusa. Substituímos deuses por categorias, céus por estruturas ontológicas, mas o instinto é o mesmo: negar que somos animais destinados a desaparecer num mundo que não se importa.
A verdade que o homem mais teme não é a de que a metafísica seja impossível, mas a de que ela seja irrelevante. O mundo não precisa ser compreendido para continuar existindo. As estrelas não aguardam nossas teorias para queimar, nem as placas tectônicas consultam nossos sistemas antes de se moverem. O homem, esse animal que sonha com absolutos, insiste em crer que sua capacidade de intuir “possibilidades e impossibilidades” revela algo universal. Mas o que ela realmente revela é apenas isto: a engenhosidade de um primata que, sabendo-se finito, inventou conceitos para fingir que não é.
Se há uma lição a tirar, não é que precisamos de metafísica para sustentar o saber. É que, enquanto acreditarmos nisso, estaremos presos ao mesmo ciclo de autoengano que produziu deuses, utopias e ideologias. A única libertação possível não é fundar a ciência numa metafísica, mas abandonar a necessidade de fundamentos. O homem é o único animal metafísico não porque seja superior, mas porque é o único incapaz de viver sem mitos — mesmo os mitos travestidos de filosofia.
A análise de que todo objeto, para ser intuído, deve apresentar-se como um feixe articulado de possibilidades e impossibilidades toca num ponto central. Ver um gato é saber, instantaneamente, que ele não voa; intuir um quadrado é reconhecer de imediato as relações geométricas que o estruturam. Essa capacidade não é um sopro divino nem um sinal de um reino platônico; é uma ferramenta adaptativa. O cérebro humano, produto de mutações e contingências, sobreviveu porque conseguiu ler o mundo como um sistema de limites e potências, distinguindo rapidamente entre o possível e o impossível. É por isso que falamos de “objetos” e não apenas de fluxos amorfos de sensação. A objetualidade, longe de ser uma janela para o absoluto, é uma estratégia de sobrevivência.
A história do pensamento ocidental está repleta dessa obsessão com o que transcende a experiência. Desde Parmênides até Hegel, vemos a mesma tentativa: converter o fluxo mutável do mundo num esquema fixo de Necessidade. A metafísica, nesse sentido, não é a ciência dos fundamentos do real, mas a projeção dos anseios humanos por estabilidade num universo indiferente. A própria distinção entre possibilidade e impossibilidade, tão central ao raciocínio do texto, não é uma estrutura do mundo, mas uma função do organismo. O que hoje é impossível — voar como um pássaro — pode amanhã ser corriqueiro, como o demonstram os aviões. As “impossibilidades” são apenas a versão provisória de nossas limitações técnicas e cognitivas.
Os animais não precisam de metafísica. Um corvo reconhece a diferença entre uma presa alcançável e outra inalcançável sem formular conceitos de “possibilidade” e “impossibilidade”. Um leão não se pergunta se a gazela é um “objeto” dotado de um sistema articulado de potências; ele apenas caça ou desiste. Só o homem, incapaz de tolerar a contingência, transforma sua habilidade de discriminar regularidades em uma doutrina sobre os alicerces do ser. Chamamos a isso “ciência primeira”, quando não passa de mais uma narrativa que mascara a nossa vulnerabilidade.
A ideia de que a metafísica é necessária porque sem ela não haveria ciência ignora um fato elementar: a ciência prospera justamente quando abandona qualquer pretensão de tocar o absoluto. O método científico não busca “fundamentos últimos”, mas padrões úteis, provisórios, sempre prontos para serem descartados. O que chamamos de leis são apenas hábitos do mundo enquanto nossos instrumentos os percebem. Se a gravidade um dia deixasse de operar, nada no cosmos a traria de volta por obediência a uma “necessidade”. A natureza não tem compromissos com nossas distinções entre o possível e o impossível.
Na verdade, a noção de impossibilidade absoluta é uma superstição disfarçada de racionalidade. O que parecia impossível para Aristóteles — que o vácuo existisse, que a Terra não fosse o centro do universo — tornou-se trivial. O que hoje tomamos por limites invioláveis pode, amanhã, dissolver-se, seja por uma inovação técnica, seja por uma mutação do próprio mundo. O universo não reconhece categorias humanas. Ele não é lógico, nem ilógico; apenas é.
A insistência em fundar o conhecimento numa metafísica revela mais sobre os medos humanos do que sobre a estrutura da realidade. Somos a única espécie que sabe que vai morrer. E, incapazes de aceitar a indiferença do cosmos, criamos sistemas — religiosos, filosóficos, científicos — que prometem que, ao menos em nível conceitual, habitamos uma ordem inteligível. A metafísica é apenas a versão mais sofisticada dessa recusa. Substituímos deuses por categorias, céus por estruturas ontológicas, mas o instinto é o mesmo: negar que somos animais destinados a desaparecer num mundo que não se importa.
A verdade que o homem mais teme não é a de que a metafísica seja impossível, mas a de que ela seja irrelevante. O mundo não precisa ser compreendido para continuar existindo. As estrelas não aguardam nossas teorias para queimar, nem as placas tectônicas consultam nossos sistemas antes de se moverem. O homem, esse animal que sonha com absolutos, insiste em crer que sua capacidade de intuir “possibilidades e impossibilidades” revela algo universal. Mas o que ela realmente revela é apenas isto: a engenhosidade de um primata que, sabendo-se finito, inventou conceitos para fingir que não é.
Se há uma lição a tirar, não é que precisamos de metafísica para sustentar o saber. É que, enquanto acreditarmos nisso, estaremos presos ao mesmo ciclo de autoengano que produziu deuses, utopias e ideologias. A única libertação possível não é fundar a ciência numa metafísica, mas abandonar a necessidade de fundamentos. O homem é o único animal metafísico não porque seja superior, mas porque é o único incapaz de viver sem mitos — mesmo os mitos travestidos de filosofia.
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