Fala-se com reverência da leitura como se fosse um caminho seguro à sabedoria, um ritual quase sagrado de aperfeiçoamento da alma. Lê-se para tornar-se mais humano, dizem. Lê-se para adquirir linguagem, ampliar a sensibilidade, habitar a história. Tais afirmações, envernizadas com o brilho da Antiguidade — Quintiliano, Cícero, Sêneca —, podem soar reconfortantes em um tempo que busca âncoras em meio ao vazio moral do progresso moderno. Mas são, em sua essência, expressões de fé humanista — e como toda fé, não resistem à prova dos fatos.
O humanismo secular, filho bastardo da tradição cristã, herdou a crença de que há uma essência humana a ser cultivada, e que essa essência floresce por meio da razão, da cultura e da educação. Ler, portanto, não é apenas uma atividade: é um ato de redenção. Mas se olharmos de perto a história da humanidade, o que vemos? Eruditos que apoiaram genocídios, literatos que silenciaram diante do terror, bibliotecas inteiras construídas ao lado de campos de extermínio.
A leitura, longe de ser um antídoto contra a barbárie, frequentemente convive com ela. Os arquitetos da modernidade — os que queimaram hereges ou forjaram ideologias totalitárias — também leram os clássicos. A suposição de que livros “formam o espírito” é uma das ficções mais persistentes da cultura ocidental, mantida com zelo quase religioso. É preciso lembrar: a cultura pode formar tanto um monge quanto um carrasco.
Os estoicos — tão citados como arautos de equilíbrio — ofereceram à elite romana consolo diante da decadência inevitável. Mas seu ideal de apatia também alimentou a indiferença diante do sofrimento humano. Quando Epicteto adverte que a leitura não deve ser vanglória, está certo; mas sua proposta de uma alma autossuficiente é uma miragem. A leitura não salva — e tampouco transforma com consistência. O que transforma é a contingência: dor, perda, catástrofe. O que molda o humano é o acaso, não a biblioteca.
É evidente que há livros que perturbam. Há leituras que rasgam a superfície da consciência e nos confrontam com o abismo. Mas elas são a exceção, não a regra. E mesmo quando acontecem, não garantem mudança. Lemos Nietzsche há mais de um século, e no entanto ainda organizamos a vida em torno de esperanças metafísicas: o progresso, a salvação política, o autoaperfeiçoamento.
Quando Santo Agostinho ouve “tolle lege” e muda sua vida, temos um belo símbolo. Mas o que se celebra não é a leitura — é a conversão. E toda conversão, literária ou religiosa, é um salto no escuro, não o fruto de um processo lógico. A crença de que livros funcionam como fermento da alma apenas traduz, em linguagem laica, a velha aspiração de salvação por meio da fé. Substituímos Deus pelos autores clássicos, o evangelho pelo cânone literário.
Os antigos sabiam que a leitura era apenas um artifício. Sêneca lia para preparar-se para a morte, não para escapar dela. Hoje, lemos para esquecer que vamos morrer. A obsessão contemporânea com a produtividade literária — “quantos livros você leu este ano?” — apenas revela o desespero oculto em nossa busca por sentido. Leitura virou performance, consumo espiritual. Em vez de sabedoria, nos oferece um menu de vozes mortas para escolher como se fossem personagens de um jogo de identidade.
Reitero: não desprezo os livros. Eles contêm beleza, perplexidade, até lucidez. Mas não são faróis nem guias. São ruínas. E lê-los é um ato arqueológico, não um rito de iniciação à verdade.
A leitura não nos transforma: nos revela — quando muito — a fragilidade de nossas certezas. E isso, por si só, já seria suficiente. Se abandonássemos a ilusão de que ler nos torna melhores e aceitássemos que, como os cães de rua, vagamos entre detritos de ideias alheias tentando farejar sentido, talvez pudéssemos ler com mais liberdade. Sem idolatria. Sem fé. Apenas como quem abre uma janela e sente o vento.
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