A Literatura como Insurgência — Memória, História e o Esquecimento Político na América Latina


A frase de Cristina Peri Rossi — “desde criança tinha o desejo veemente de escrever contra vento e maré” — é, à primeira vista, uma expressão de teimosia artística, um ímpeto individual. Mas, ao olhar mais de perto, essa declaração revela uma postura mais profunda: a do escritor como insurgente. Não insurgente no sentido revolucionário clássico, de tomada de poder, mas no sentido mais sutil e duradouro: o de resistência contra a tentativa de aniquilar a memória.

Na tradição liberal ocidental, costuma-se celebrar a liberdade de expressão como direito inalienável. No entanto, raramente se reconhece o papel do escritor sob regimes autoritários: não como alguém que simplesmente deseja se expressar, mas como alguém que carrega a responsabilidade de preservar aquilo que o Estado deseja apagar — a lembrança da violência, a dignidade dos vencidos, a subjetividade dos silenciados.

A América Latina do século XX conheceu muito bem esse processo. As ditaduras militares que se espalharam pela região — no Chile de Pinochet, na Argentina da Junta, no Brasil do AI-5 e no Uruguai que forçou Peri Rossi ao exílio — não foram apenas projetos de dominação política. Foram também máquinas de esquecimento. Como todo projeto totalitário, essas ditaduras entendiam que o controle da memória era uma forma superior de poder. Apagar, manipular ou reescrever o passado era tão essencial quanto reprimir o presente.

Cristina Peri Rossi, Leila Guerriero, Beatriz Sarlo: nomes de mulheres que se colocaram contra esse processo de apagamento. A literatura, em suas mãos, não é um reflexo do real nem uma fuga dele — é um campo de disputa. Guerriero, ao mergulhar no testemunho de Silvia Labayru, torturada na Argentina, não apenas reconstrói um episódio histórico: ela reabre uma ferida que muitos prefeririam manter cauterizada. Sarlo, por sua vez, não nos oferece respostas, mas exige que enfrentemos as contradições entre a memória e a história — pois, como ela bem diz, “nem sempre a história consegue acreditar na memória”.

Essa distinção é fundamental. A história, em sua forma acadêmica e institucional, busca provas, evidências, cronologias. Já a memória é vivida, fluida, frequentemente incômoda. A memória dos que sobreviveram à tortura, ao desaparecimento de filhos, ao exílio, não se encaixa nas narrativas reconfortantes de reconciliação nacional. Por isso, tende a ser descartada ou relativizada. No Brasil, por exemplo, onde nenhuma comissão da verdade resultou em punições e onde autoridades atuais questionam os horrores da ditadura, o esquecimento é quase uma política de Estado.

Para um pensador secular como eu, que rejeita utopias políticas e desconfia de qualquer teleologia da história, a obra desses escritores é uma forma de verdade mais profunda do que a historiografia pode oferecer. Porque ela não tenta organizar o passado em nome de um futuro melhor. Ao contrário: ela nos mostra que o passado não passa. Ele insiste. Ele sangra. Ele se infiltra no presente — seja na fala de um presidente que nega a tortura, seja no silêncio de uma sociedade que prefere não lembrar.

E aqui voltamos à figura do escritor como insurgente. Em um mundo onde os horrores do século XX são constantemente reescritos em nome da estabilidade, da paz ou do progresso, o verdadeiro gesto radical não é propor um novo sistema político — é lembrar. Recontar. Escrever, contra vento e maré.

Cristina Peri Rossi escreveu durante o exílio, quando o Estado queria que ela desaparecesse. Guerriero ouve vozes que o poder preferiria esquecer. Sarlo questiona a própria possibilidade de construir uma história verdadeira a partir de uma memória conflitante. Essas mulheres não escrevem por nostalgia ou heroísmo. Escrevem porque sabem que o esquecimento é a forma mais insidiosa de violência. E porque sabem que, em última instância, a luta pelo passado é também uma luta pelo presente.

Talvez o mais perturbador seja que a repressão, mesmo derrotada, continua vencendo se consegue fazer com que se esqueça. Contra isso, resta apenas a literatura — não como monumento, mas como ruína viva, como ferida aberta, como insistência.

Essas autoras estão sendo publicadas no Brasil. Procure por suas obras.

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