A história da leitura é também a história do ser humano tentando escapar da condição humana. No gesto silencioso de quem abre um livro há, frequentemente, um desejo não de compreender o mundo, mas de abandoná-lo — ou, no máximo, de torná-lo suportável. A leitura foi, por séculos, uma das poucas formas aceitáveis de alienação — um meio respeitável de esquecimento. Hoje, porém, esse esquecimento se automatizou.
Durante milênios, os seres humanos se dedicaram à tarefa impossível de reter conhecimento. A memória falha, os livros se perdem, as bibliotecas queimam. A figura do erudito, consumido por textos, tentando abarcar o mundo com os olhos, não é mais do que a ilustração melancólica de nossa impotência diante do tempo. Ainda assim, por um breve momento da história — um interlúdio entre a invenção da imprensa e o surgimento da internet — a leitura profunda foi tida como virtude. Uma forma de alcançar algo que se aproximava do sentido. Isso foi uma ilusão.
A inteligência artificial revela essa ilusão com clareza brutal. As máquinas leem mais rápido, mais profundamente (se profundidade for reduzida à extração de padrões), mais consistentemente. Se o objetivo da leitura fosse puramente informacional, os humanos estariam agora obsoletos. Mas a leitura nunca foi apenas isso — embora a maior parte da atividade humana sempre tenha fingido que era.
Ao contrário do que os otimistas tecnológicos afirmam, a IA não ameaça o ideal humanista da leitura — ela o torna visível como mito. O sujeito que lê “tudo”, que conhece o cânone, que lembra cada verso de Spenser ou cada traço de Joyce, nunca existiu fora da ficção acadêmica. A IA não substitui esse leitor ideal: ela o desmascara. O que ela nos força a admitir é que a maior parte do que chamamos de conhecimento sempre foi transitório, superficial, insustentável.
Mas, nesse reconhecimento, há uma liberdade. Ao nos liberar da pressão de acumular, a IA pode nos permitir — paradoxalmente — uma relação mais humana com os livros. Se aceitarmos que não seremos bibliotecas ambulantes, podemos retornar ao que a leitura já foi: uma experiência finita e falível, marcada pelo tempo, pela repetição, pela perda. A beleza da leitura não está na completude, mas na incompletude. Lemos mal, esquecemos, distorcemos — e é nisso que reside a marca do humano.
O verdadeiro perigo da leitura automatizada não é que percamos o acesso aos textos, mas que passemos a tratá-los como descartáveis. Se o texto é apenas um trampolim para outro produto — um resumo, um vídeo, uma sinopse interativa — ele deixa de ser um fim e passa a ser um meio. O livro deixa de ser lugar de repouso e se torna esteira de produção. Isso não é apenas uma mudança cultural: é uma transmutação da própria ideia de conhecimento.
No fim, não será a IA que decretará a morte da leitura, mas o fato de que os humanos deixarão de ver valor em ler. A máquina lerá por nós. Nós, talvez, passemos a ouvir o que ela leu. Ou nem isso.
Talvez reste, para alguns poucos, o prazer secreto de se perder num texto inútil, de reler por puro cansaço, de esquecer metade do que se leu e lembrar de uma frase no momento preciso em que ela não resolve nada. Esses serão os últimos leitores. Não melhores, não superiores — apenas sobreviventes de uma prática que já foi uma forma de fingir que éramos mais do que animais que passam.
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