por alguém que ainda prefere pensar devagar
A maioria das pessoas lê poesia como quem folheia panfletos: busca a mensagem, a lição, a moral da história. E quando não a encontra, acusa o autor de obscuro, hermético, irônico demais — como se ironia fosse um defeito. Esse impulso redutivo não é um problema de leitura, mas de formação espiritual: vivemos num tempo em que quase ninguém sabe mais escutar uma forma.
É nesse ambiente hostil à linguagem que a poesia de Paulo Leminski aparece com um brilho paradoxal. Brilho discreto, quase indiferente ao aplauso. Leminski não quer ser amado — quer ser ouvido. E para ouvi-lo, é preciso reaprender algo que nossa cultura há muito esqueceu: que a linguagem não serve apenas para dizer o mundo, mas para dizer-se mundo.
Reler Leminski hoje é reencontrar a presença do logos em estado bruto: a palavra antes da interpretação. Seus poemas curtos não são resumos; são proposições filosóficas na forma de murmúrio. Ao contrário da verborragia acadêmica ou da poesia inflacionada de sentimentos, ele escolhe a via mais difícil: dizer pouco, para que cada sílaba seja uma decisão ontológica. E isso, que deveria ser evidente, passa despercebido.
Tomemos o poema:
isso?Muitos lerão isso como um jogo. Outros, como um gracejo pós-moderno. Estão errados — ou melhor, estão cegos à gravidade do gesto. Esse poema não é uma brincadeira. É uma síntese existencial. Está ali o espanto primordial do ser lançado no tempo: a surpresa do nascimento, a violência da finitude, a velocidade da experiência e a impotência da linguagem. Leminski condensa em quatro palavras uma angústia milenar — e o faz com a leveza de quem sabe que, no fim, nenhuma angústia é original.
aqui?
já?
assim?
Sua poesia, ao contrário do que pensam os cultores da espontaneidade, não é produto do improviso. É fruto de uma inteligência cultivada com disciplina: há latim ali, há Zen, há Nietzsche, há Bashô, há concretismo e haicais, há erudição e sensibilidade histórica. Mas tudo isso é destilado até chegar ao essencial — ao que permanece quando a linguagem se esgota de si mesma.
O poeta que muitos chamam de "malandro" é, na verdade, um monge disfarçado. Um monge que se move por dentro do caos urbano com a tranquilidade de quem medita em trânsito. Seus poemas são rituais privados executados em público. Não há sentimentalismo, não há retórica de sofrimento, não há pedido de empatia. Há forma. E a forma, se bem compreendida, é sempre uma ética.
Por isso mesmo, não se pode ler Distraídos venceremos sem perceber a mudança de temperatura. Ali, Leminski já não é apenas o virtuose da concisão, mas o homem que retorna do sofrimento com uma nova técnica: a rarefação. Ele mesmo escreveu que buscava a “abolição da referência”, e isso não é escapismo — é alquimia poética. Transforma a dor em música silenciosa. Não a comunica, a transmuta. É o contrário da confissão.
Há um ponto aqui que vale sublinhar. A maior parte da poesia contemporânea oscila entre o sentimentalismo kitsch e o formalismo estéril. Leminski escapa disso com uma elegância brutal. É como se dissesse ao leitor: “sinta, mas não se derrame; pense, mas não se prenda à ideia”. Essa exigência formal vem de uma consciência aguda do tempo — de sua brevidade, de sua desordem, de sua indiferença. E é justamente por compreender o tempo que Leminski constrói uma poética da pausa. Um poema, nele, é sempre uma interrupção. Não no fluxo da linguagem — mas no automatismo do mundo.
Tampouco se engane com seu humor. O humor em Leminski é um índice da sua inteligência trágica. Ele sabe que a piada, quando bem feita, revela mais que mil diagnósticos sociológicos. Isso é algo que o leitor sério precisa reaprender: o riso não é inimigo da verdade. Muitas vezes, é sua única forma aceitável.
arte do cháEste poema é um tratado espiritual condensado. A cerimônia do chá, na tradição zen, exige atenção plena, gestos conscientes, economia absoluta. Leminski captura tudo isso em um convite informal — e termina com uma frase que parece banal: “ficou por isso mesmo”. Mas aí está a beleza. Tudo ficou por isso mesmo — e isso basta. Esse é o ponto em que a poesia toca a sabedoria: quando abandona o desejo de provar algo.
ainda ontem
convidei um amigo
para ficar em silêncio
comigo
A trajetória final de Leminski, marcada pela decadência física, não apaga sua lucidez — a torna mais rara. Em seus últimos versos, a linguagem já não é mais instrumento de expressão, mas vestígio de algo que resiste ao colapso: a integridade da forma diante do caos interior.
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
Esse tipo de formulação não nasce do desespero, mas da aceitação. E aceitar não é resignar-se. É compreender que viver, como ele diz, “não tem cura” — e seguir escrevendo como quem doma o incurável com precisão cirúrgica.
Leminski não quis ser um modelo. E é por isso mesmo que se tornou um. Seu exemplo não está no que pensava, mas em como escrevia. Ele não propõe ideias: propõe gestos de linguagem. E esses, ao contrário das ideias, são difíceis de falsificar.
Hoje, sua obra cintila nas redes como se tivesse sido feita para isso. Mas é apenas um acaso — ou, como ele escreveu:
acaso é este encontroPode ser. Mas esse acaso, em Leminski, nunca é gratuito. É sempre um convite à atenção. E a atenção, nos dias que correm, é talvez a última forma legítima de resistência.
entre o tempo e o espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que eu faço?
Postar um comentário