O que você lê, e por quem? Uma genealogia da leitura no fim do Parêntese de Gutenberg



Durante muito tempo, a leitura foi um ato quase invisível, íntimo, insuspeito. Uma pessoa lendo em um banco de praça — um romance barato, um jornal velho, uma biografia de presidentes mortos — era apenas isso: uma pessoa lendo. Sem curadoria, sem audiência, sem performance. Ler era ato de interioridade: o que importava era o silêncio do olho que roçava a linha, não o que os outros achariam do que se lia. A leitura acontecia como uma espécie de respiração da alma — contínua, ritmada, invisível.

Essa era, no entanto, uma leitura ancorada num mundo em que a informação ainda obedecia à forma do livro. No Parêntese de Gutenberg, como diria um teórico qualquer, o livro era o dispositivo central de transmissão de saber, e a leitura era o ato solene de ingressar no mundo das ideias. Hoje, esse parêntese está se fechando — não com um ponto final, mas com uma cacofonia de hiperlinks, recomendações algorítmicas e feeds infinitos. E com ele se fecha uma certa ideia de sujeito leitor: lento, reflexivo, solitário.

No lugar desse leitor antigo, surge o leitor pós-moderno, moldado pelo atrito constante entre atenção e distração. Ele lê enquanto espera o micro-ondas apitar, enquanto ouve um podcast sobre produtividade, enquanto escapa do peso de um dia inútil rolando textos semi-informativos no Substack ou ouvindo o resumo de um livro sobre o Estoicismo narrado por um coach no Spotify. O novo leitor não lê: ele absorve, ele se atualiza, ele consome conteúdo — e o faz sob a vigilância constante das notificações.

Eu não lamento o fim de uma "tradição ocidental" que nunca existiu fora dos compêndios escolares. Observo, com olhar clínico, a mutação do sujeito da leitura como parte da reconfiguração geral da cultura. Para a direita, o declínio da leitura tradicional é sinal do fim da civilização. Para a esquerda crítica — não aquela anestesiada por TikTok progressista, mas a que ainda pensa — trata-se da transformação de uma forma histórica da leitura em outra, ainda informe, ambígua, contraditória.

Eis a verdade: nunca lemos tanto — mas nunca lemos tão mal. A quantidade de texto em circulação hoje é incalculável, mas sua função é cada vez mais instrumental: ler para clicar, para julgar, para compartilhar indignação, para reforçar convicções. O texto perde profundidade e vira interface. A leitura, antes jornada, vira atalho.

Há, claro, resistências. Há ainda quem leia como quem cava um túnel: lentamente, contra a superfície, buscando luz no fundo. Mas são poucos. A IA, por sua vez, entra nesse cenário como uma espécie de golem leitor. Não sente, não cansa, não esquece. Lê tudo, sintetiza tudo, responde tudo. Os Cowens do mundo agora escrevem para serem lidos por máquinas — máquinas que talvez nos leiam melhor do que nós mesmos. Que saibam mais sobre nosso estilo do que nossos amigos. Que poderão, no futuro, escrever nossa autobiografia melhor do que nós jamais conseguiríamos.

E aqui eu preciso parar para perguntar: o que resta do humano na leitura mediada por IA? A resposta não é simples. Há algo de fascinante na possibilidade de ter à disposição um leitor ideal — incansável, atento, gentil. Mas há também algo de profundamente melancólico nisso: saber que os grandes textos que moldaram o espírito humano — de Tolstói a Ferrante, de Joyce a Clarice — podem se tornar apenas matéria-prima para resumos otimizados.

No entanto, resistir à mutação é inútil. O remix chegou à literatura, como chegou à música e ao cinema. Ler será, cada vez mais, editar. Adaptar. Pular. Reordenar. Compartilhar. Uma leitura feita a partir de prompts, de pedaços, de filtros. O leitor do futuro será um leitor-produtor — um hacker da linguagem, um DJ da interpretação.

Mas isso não precisa ser o fim da leitura. Pode ser o começo de outra coisa. Insisto: a leitura não morre, ela muda de forma. Cabe à esquerda crítica não apenas lamentar o que se perde, mas entender o que se ganha. E, sobretudo, lutar para que a nova ecologia da leitura não seja um instrumento de adestramento, mas de libertação. Que a IA seja não um pastor eletrônico, mas uma ferramenta para aprofundar o pensamento.

No fim, o que você lê — e por quem — nunca foi uma questão neutra. É uma questão política. E o futuro da leitura será aquilo que fizermos dele: distração ou despertar, alienação ou insurgência.

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