Na memória de um menino de nove anos, o dia em que sua mãe lhe apresentou à máquina de escrever portátil da marca Olivetti se cristalizou como um rito de passagem — embora fosse “portátil” apenas segundo o marketing. O peso do objeto excedia as forças do pequeno corpo que o recebeu com entusiasmo quase religioso. Final dos anos 1980. A expectativa do novo, a promessa de criação, imprimiram na mente infantil um alvoroço que o acompanhará pela vida inteira.
O menino saiu da loja com os olhos acesos e a cabeça fervilhando. Voltou para a casa da avó — lar temporário de tantos sonhos — subindo a ladeira da Pedreira com o pensamento fixo na técnica que sua mãe, mulher de paciência firme e vocação pedagógica sem diploma, havia lhe ensinado. Havia um botão giratório que controlava a entrada da folha de papel. Era preciso girá-lo, inserir o sulfite, puxar uma alavanca para soltá-lo, alinhar bordas com rigor quase matemático, e devolver a alavanca ao ponto de origem antes de girar novamente o botão, até que o papel repousasse perfeitamente, pronto para ser marcado.
Não era apenas técnica. Era iniciação. A mãe lhe mostrara como “bater” letras maiúsculas e minúsculas, como corrigir erros — sobrepondo letras com a coragem de aceitar rasuras — como alternar entre o preto e o vermelho, e até usar a letra “l” como um número “1”, recurso de engenhosidade doméstica que só os iniciados sabiam manejar.
Essa mesma mãe, que não se via como comerciante nem como provedora tradicional, já havia lhe dado a chave da alfabetização. O conduziu por histórias em quadrinhos, entre patos falantes e coelhos espertos, pelas páginas da Disney e da Turma da Mônica. Incentivou-lhe o traço e a narrativa, como quem planta sementes sem cobrar a colheita. A sua herança veio em forma de cultura — múltipla, acessível, generosa.
Hoje, o menino é um homem. E mesmo que os números lhe escapem — em transações, cálculos ou finanças — há nele uma consciência clara da diferença. Não melhor, não pior. Apenas outro. Alguém que lê por prazer, desenha por impulso, canta por alegria, escreve por necessidade. Nenhuma dessas paixões lhe trouxeram riqueza. E isso, talvez, nunca mude. Não será ícone de prosperidade. Não será exemplo universal.
Mas é feliz. Profundamente feliz com o homem que se tornou. E a raiz de tudo isso — a origem silenciosa, mas incontornável — está na mulher que lhe ensinou a bater as primeiras letras e a sonhar com elas.
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