Ele usava uma gravata torta, do tipo que um estagiário aprende a dar no terceiro mês de trabalho, quando já não quer parecer um estagiário. Sentou-se na mesa do café como se tivesse vencido uma maratona, jogando as costas na cadeira com a satisfação meticulosa de quem acha que merece estar ali — e talvez achasse mesmo.
O reencontro, proposto por ele com um “vamos marcar aquele café!”, começou com os clássicos tapinhas no ombro e as piadas internas dos tempos da faculdade, quando os dois escreviam reportagens para o jornal universitário com a mesma pretensão de salvar o mundo — e a mesma ignorância sobre como funcionava o mundo que queriam salvar.
Mas agora só um deles estava salvo.
“E aquela revista que você tava?”, ele perguntou, mexendo o açúcar com a colher como quem mexe no passado do outro. Quando ouviu que a revista havia fechado, arregalou os olhos por um instante — rápido demais para ser sincero, lento demais para parecer educado.
Então veio o sermão. Disfarçado de ironia, com um humor involuntariamente cruel, desses que se camuflam no tom de piada para poderem escapar impunes. Falou sobre planejamento de carreira, sobre oportunidades que se criam, sobre como o fracasso, no fundo, é uma falha de caráter bem mascarada.
Ele se despediu satisfeito. Tinha feito a sua boa ação do dia — e ainda por cima com graça. Saiu dali com a sensação de que havia dito algo importante. Um homem convencido de sua lucidez é sempre o mais perigoso dos profetas.
No dia seguinte, o artigo: uma longa coluna sobre desigualdade, sobre jovens talentos esquecidos pelo mercado, sobre a necessidade de um jornalismo mais humano. Escreveu, com a solenidade de um bispo social-democrata, que ninguém deveria ser julgado por sua condição momentânea. Era, para todos os efeitos, um texto com o qual o seu antigo colega desempregado podia concordar — exceto por um detalhe: o autor não acreditava naquilo quando não estava escrevendo.
Na prática, o discurso social servia apenas como um adorno ideológico, um cinto moral que se usava na cintura da consciência para parecer mais elegante. Era preciso estar desempregado para saber que o pior da pobreza não era a falta de dinheiro, mas a falta de escuta. A sensação de se tornar invisível para aqueles que, há pouco, dividiam a mesa do bar e os sonhos juvenis.
Ninguém supera uma fase ruim apenas com planilhas e conselhos motivacionais. Supera-se com solidariedade silenciosa, com a dignidade de uma escuta honesta, com a delicadeza de não fazer perguntas demais. O desempregado, o quebrado, o frustrado — ele não quer ser salvo por um messias cínico. Ele só quer ser tratado como alguém que ainda pertence à vida.
É curioso como os bem-sucedidos acham que o fracasso alheio é sempre uma escolha mal feita. Talvez porque admitir o contrário signifique encarar o quanto sua própria ascensão dependeu de fatores externos — contatos, empurrões, silêncios coniventes. O mercado editorial, por exemplo, nunca foi uma meritocracia: é um clube. E quem nega isso costuma estar dentro.
O que falta, talvez, não seja um plano de carreira, mas um plano de convivência. A pobreza — mesmo que temporária — desmoraliza quem a atravessa não apenas pela dificuldade material, mas pela vergonha imposta. O fracasso alheio parece nos incomodar porque nos lembra que o chão ainda está ali, e que é mais perto do que gostamos de imaginar.
O colega bem-sucedido acreditava em grandes teorias e diagnósticos sociais, mas não sabia o que fazer diante de um ser humano em crise. E isso diz muito mais sobre ele do que qualquer editorial que venha a escrever.
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