Contra a Ilusão da Obra: Sobre a Escrita, o Fracasso e a Finitude



A maior ilusão cultivada por escritores – e, em geral, por todos que se veem em atividades criativas – é a de que a escrita pode oferecer alguma forma de redenção. Não falo de redenção religiosa, que já perdeu, para muitos de nós, qualquer sentido, mas de uma versão secularizada da mesma promessa: a de que, por meio do esforço paciente, do talento ou da mera persistência, encontraremos um sentido que nos absolverá da desordem e da contingência da vida. Escrevemos, assim nos dizem, para resistir ao esquecimento, para dar forma ao caos, para preservar algo que nos ultrapassa. Mas é precisamente essa crença que se dissolve quando confrontamos a experiência real do ato de escrever: uma sucessão de tentativas, fracassos e concessões que, mesmo quando resultam em algo legível, deixam atrás de si uma vasta pilha de ruínas invisíveis – livros não escritos, ideias abandonadas, frases que nunca nasceram.

A escritora Karen Olsson, ao refletir sobre a matemática e a escrita, descreve esse território onde o desconhecido se encontra com o conhecido como uma extensão inóspita, sem trilhas nem bússola, onde cada passo apaga outras infinitas possibilidades. A frase que finalmente se fixa na página – concreta, limitada, imperfeita – nasce do desaparecimento silencioso de incontáveis alternativas, cada qual mais perfeita em sua não existência. Esse lamento, raramente expresso, revela uma verdade desconfortável: a criação não é apenas produção, mas destruição em larga escala. Escrever não é apenas dar forma; é enterrar possibilidades.

É revelador que essa sensação de perda surja mesmo em escritores experientes. Depois de anos, ou décadas, publicando livros, os que continuam a escrever não o fazem porque acreditam, ingenuamente, que a prática se tornará mais fácil ou recompensadora. Fazem-no porque, desprovidos de outra vocação, restam-lhes duas alternativas igualmente insatisfatórias: continuar escrevendo apesar da descrença, ou abandonar a escrita e encarar o vazio que sempre esteve lá, mascarado por palavras. Como a narradora dos contos de Adriana Lunardi, muitos se veem diante da tela em branco, o cursor pulsando como um punhal, e percebem que talvez a escrita – esse abrigo construído ao longo de uma vida – não seja mais capaz de protegê-los.

Essa constatação não é uma exceção pessoal, mas o reflexo de uma condição histórica mais ampla. A escrita – e, de modo geral, toda atividade criativa – deixou de ser, há muito, uma prática desvinculada da economia. Em uma época em que até o silêncio é monetizado e transformado em conteúdo, a literatura já não é uma forma de refúgio ou transcendência, mas mais um competidor na disputa por recursos escassos: tempo, atenção, saúde mental. Contra o que dizem poetas românticos e defensores da virtude empreendedora, a escrita não é um ato puro de inspiração. É uma atividade material em um mundo material, sujeita às mesmas forças que regem qualquer outro ofício. Em um cenário de colapso ambiental iminente, instabilidade política e precarização cultural, esperar que a escrita funcione como via de salvação é tão ingênuo quanto esperar que a religião, em seu estado atual, nos livre do destino comum.

É nesse ponto que a ideia de Maggie Nelson sobre o “trabalho paciente” se torna crucial. Inspirando-se em Foucault, Nelson descreve a escrita – e outras formas de prática crítica – não como um caminho para a liberdade, mas como um exercício de aceitação dos limites. O verdadeiro objetivo não é a autolibertação, mas o desapego crescente em relação ao resultado, a capacidade de trabalhar mesmo quando não há promessa de recompensa, transcendência ou reconhecimento. Escrever, nesse sentido, não é muito diferente de lixar lentamente as grades de uma prisão com uma lixa de unha, sem certeza de que haverá fuga no fim.

Tal postura pode parecer niilista, e de fato o é, se aceitarmos que niilismo não é a rejeição de todos os valores, mas o reconhecimento de que valores são construções frágeis e transitórias. Georges Bataille, uma das figuras que retorna como obsessão na concepção do livro em andamento, compreendeu isso melhor do que a maioria: para ele, a soberania não estava em acumular propósitos, mas em abandoná-los. Existe um êxtase particular na inutilidade, na recusa de justificar a própria atividade em termos de utilidade ou sentido maior. Escrever, então, não seria um meio para escapar do absurdo, mas uma maneira de habitá-lo com mais intensidade.

Talvez seja por isso que o desapego – e não a inspiração – seja o verdadeiro motor de um projeto literário que resiste. Libertar-se da exigência de que o livro seja uma tese, uma autoficção, um romance histórico ou uma obra-prima é o que permite, paradoxalmente, que ele comece a existir. Aceitar que a escrita é, na melhor das hipóteses, um encontro forçado e diário com nossos limites – de energia, inteligência, tempo e lucidez – é o que nos permite continuar, mesmo quando o cursor parece uma lâmina e o silêncio, uma sentença.

O que a modernidade tardia nos oferece, contudo, é uma dificuldade adicional: a crença difundida de que tudo, inclusive a criação artística, deve justificar-se em termos de progresso ou relevância. Espera-se que um livro contribua para um debate, para uma carreira, para uma identidade pública. Mas a literatura, quando é honesta consigo mesma, não promete nada disso. Como escreveu Virginia Woolf, o romance é, acima de tudo, uma forma singular de ordenar os objetos grandes e comuns da vida – o homem, os outros homens, a natureza e o poder que, por conveniência, chamamos de Deus. É uma ordenação precária, muitas vezes monstruosa, que não busca convergir com nenhuma escala universal de proporção ou importância. Dois romancistas podem viver na mesma época e, ainda assim, ver mundos radicalmente distintos.

A literatura, assim entendida, não nos redime, não nos liberta, nem nos salva da insignificância. Mas tampouco precisa fazê-lo. Se há algum valor em continuar a escrever – e não há razão objetiva para supor que haja – ele reside justamente nessa recusa em servir a algo além de si mesma. Escrever não é escapar da prisão, mas continuar lixando as grades, mesmo sabendo que a parede seguinte pode ser apenas mais uma cela. E ainda assim, nesse trabalho paciente e inútil, há uma forma peculiar de êxtase: o de ver, por instantes, o caos interno e externo ganhar uma estrutura, ainda que precária, que só existe porque todas as outras foram destruídas.

Talvez seja essa, afinal, a única honestidade possível para um escritor hoje: reconhecer que não há promessa de libertação, que a perda é inevitável, e que a escrita – como a vida – não tem outro propósito senão continuar, mesmo quando tudo ao redor conspira para o contrário. Se isso soa pessimista, é porque ainda nos apegamos à ideia de que otimismo é necessário para persistir. Mas como a história demonstra, não são os otimistas que constroem obras duradouras, e sim aqueles que aceitam o colapso como parte integrante do processo. Escrever, como viver, é apenas isso: atravessar o território pedregoso, guiado por uma tocha frágil, sabendo que, a cada passo, mais caminhos desaparecem para sempre.

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