O Passado Como Espelho da Ilusão Humana



Há quem veja nos livros antigos apenas curiosidades: papel amarelado, palavras arcaicas, uma sintaxe que soa como um eco de um mundo extinto. É uma ilusão confortável, porque nos permite acreditar que vivemos num tempo superior, mais lúcido, libertos das convenções e das superstições de épocas mortas. Mas abrir um romance policial de Agatha Christie — escrito entre guerras, traduzido com ortografia pré-1973, povoado por polidez artificial e crimes engenhosos — revela outra verdade: nada mudou. Apenas nos enganamos melhor.

O narrador-assassino que manipula o leitor não é um truque literário ultrapassado. Ele é o retrato fiel da condição humana. O homem moderno, que se imagina transparente e racional, continua uma criatura de máscaras, tão calculista e enganadora quanto os personagens de Christie. A diferença é que hoje a ilusão de progresso nos faz acreditar que entendemos a nós mesmos, enquanto nos perdemos em tecnologias e narrativas que apenas sofisticam nossas mentiras.

Até mesmo o amarelado do papel e as mesóclises que parecem pertencer a outro planeta têm algo a ensinar. Eles mostram que nada — nem a linguagem, nem a moralidade — segue uma linha de avanço. Mudamos as palavras, simplificamos a forma, mas continuamos fascinados pelo mesmo abismo: o crime, a duplicidade, a incapacidade de reduzir a vida a regras claras. O impulso de enganar e ser enganado é mais duradouro do que qualquer reforma cultural ou progresso técnico.

É tentador acreditar que o mundo de Christie — a Inglaterra formal, os gestos polidos, a cadência teatral — está morto, e que habitamos um tempo de maior autenticidade. Mas essa é apenas a ilusão mais recente. Os humanos sempre acreditaram estar deixando algo para trás, quando na verdade apenas mudam a forma de encenar a mesma peça.

No fim, o passado não é um país distante. É o espelho onde, contra a nossa vontade, reconhecemos que somos a mesma criatura inquieta e enganadora que sempre fomos. O papel amarelado apenas expõe o que preferimos esquecer: não há linha reta de progresso, apenas variações no mesmo teatro.

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