Entre as muitas farsas que sustentam a vida moderna, talvez a mais refinada seja a crença no progresso moral. Que as coisas caminham, ainda que lentamente, para melhor — eis a liturgia secular do nosso tempo. Mas o teatro de Tchékhov, como a vida propriamente dita, opera sob outra lógica: não há progresso, apenas repetição. Em Tio Vânia, essa repetição é uma forma de castigo, mas também de revelação. Trata-se da encenação da acídia em seu estado mais cru: o cansaço profundo com o presente, a recusa persistente do que se tem, aliada ao desejo obsessivo por aquilo que nunca virá.
Tio Vânia — o Ivan da peça — é o anti-herói que não fracassou por falta de talento, mas por excesso de ressentimento. Ele vê no professor Alexandre — intelectual pomposo e desinteressado — o usurpador de uma glória que julga merecer. Mas esse sentimento, tão comum quanto corrosivo, é sustentado por uma falácia interior: a de que havia uma vida grandiosa esperando por ele em alguma bifurcação remota, e que foi impedido de vivê-la por contingências externas. Tchékhov é impiedoso ao mostrar que essa vida nunca existiu. Vânia nunca teria sido um Schopenhauer, tampouco um Dostoiévski. Ele é apenas um homem preso à própria biografia, incapaz de aceitar que o mundo, na verdade, não lhe deve nada.
Nesse sentido, a chegada de Elena é um golpe de misericórdia. Sua juventude e beleza — atributos que, na lógica da peça, são quase que insultos ao restante dos personagens — funcionam como um espelho invertido. Em Ástrov, médico e ecologista avant la lettre, Elena acende a chama do que poderíamos chamar de delírio utópico: o sonho de uma vida outra, mais sensata, mais bela, mais justa. Ele planta árvores não porque acredita em um futuro melhor, mas para suportar o presente. Seu reflorestamento é um ritual fúnebre, uma tentativa desesperada de imprimir sentido num mundo que já desistiu de si mesmo.
A todos esses personagens, Tchékhov oferece o que poderíamos chamar de um consolo cruel: a lucidez. Não há resolução, não há redenção. Há apenas Sônia. E é justamente ela, essa figura quase apagada, que pronuncia as palavras mais devastadoras e, paradoxalmente, mais ternas da história do teatro. Seu monólogo final não é uma esperança — é uma súplica. O que ela oferece ao tio não é uma solução, mas um horizonte de rendição: o descanso eterno como única forma de justiça.
Mas se Sônia acredita com fervor, Tchékhov não acredita com ela. Sua fé é comovente, mas o violão de Tieliéguin, que a acompanha em surdina, transforma sua fala numa espécie de canção fúnebre. O paraíso que ela descreve é uma projeção tão irreal quanto as ambições de Vânia. Deus vai ter pena de nós — diz ela. Mas o que ecoa, na verdade, é o silêncio de um universo indiferente, onde o consolo está apenas na capacidade humana de fantasiar.
E no entanto — e aqui está a catártica contradição — há uma beleza insuportável nessa fantasia. Há grandeza, não na vitória, mas na dignidade da rendição. Há uma forma de resistência silenciosa no trabalho sem glória, no amor não correspondido, na espera sem fim. Viver sem sentido talvez seja insuportável, mas viver fingindo que o sentido nos será revelado é, curiosamente, o que nos mantém em pé.
Tio Vânia não nos pede para sermos heróis. Pede apenas que suportemos. Que aceitemos o cansaço como parte da vida, e não como exceção. E que reconheçamos, como num eco distante da voz de Sônia, que o descanso — esse descanso prometido — talvez nunca venha, mas que há uma estranha e silenciosa redenção na espera.
A modernidade, com seu frenesi de metas e performances, teme esse tipo de quietude. Mas Tchékhov nos lembra de que o mundo pertence não aos que vencem, mas aos que persistem. E que, no fim, talvez tudo o que nos reste seja o consolo murmurante de uma sobrinha exausta, dizendo com lágrimas e ternura:
“Nós vamos descansar.”
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