Sobre a Ilusão Redentora da Forma Literária



A espécie humana, como todos os organismos dotados de consciência, é perita em criar ficções para suportar o insuportável: a banalidade da existência, o tédio dos dias, a ausência de um propósito cósmico. Entre as mais sofisticadas dessas ficções está a literatura. Mas não me refiro aqui ao amontoado de sentimentos mal digeridos que, numa noite úmida de solidão, se transmutam em diários febris ou cartas jamais enviadas — esses murmúrios íntimos da alma são, na melhor das hipóteses, excreções do eu. Falo daquela escrita que muitos cultuam como arte: a narrativa moldada com técnica, ritmo, arquitetura simbólica — e, sobretudo, com o nobre empenho de dar sentido ao que, em si, não tem sentido algum.

É curioso observar como a humanidade, mesmo após enterrar seus deuses, insiste em salvar a experiência pela forma. Derrubamos catedrais, mas erguemos bibliotecas. Já não acreditamos em redenção espiritual, mas juramos por um refinamento estético. O impulso é o mesmo: transcendência. A escrita literária, segundo muitos bem-intencionados, seria a transfiguração do real — esse termo curioso que pretende cobrir com verniz algo que talvez não devesse ser mostrado de maneira alguma.

Um dos dogmas contemporâneos mais caros à religião secular da literatura é o da “transformação da vivência”. A matéria bruta do cotidiano — infância, perdas, paisagens emocionais — deve ser submetida a um processo alquímico onde a técnica e a forma operam como sacerdotes. O escritor, esse monge laico, não mais busca a salvação da alma, mas a eternidade simbólica de sua experiência. O curioso é que, mesmo entre ateus, persiste a fé de que o vivido só se justifica quando se converte em obra. Uma crença tocante, quase comovente, não fosse tão obviamente inútil.

A escrita íntima — a confissão espontânea ao papel — ao menos tem o mérito da sinceridade. Nela, ninguém finge que está criando beleza, ou buscando unidade estrutural, ou encenando personagens com “ritmo interno” (seja lá o que isso signifique). É o ser humano em carne ferida, procurando um eco no vazio. Já a literatura “propriamente dita”, como alguns a chamam com um fervor quase sacerdotal, envolve um grau adicional de ilusão: a ideia de que, ao organizar o caos, podemos compreender algo. Ou, mais risivelmente, que ao compreender, podemos transformar.

Não nego que a literatura exija técnica. É claro que exige. Também exige tempo, esforço e, muitas vezes, um certo masoquismo de espírito. Mas a reverência à “forma literária” como se ela fosse uma resposta à miséria existencial é apenas mais uma forma de religião — uma entre tantas. A diferença é que essa religião foi secularizada, higienizada para agradar às sensibilidades modernas. Não se fala mais em alma, mas em construção simbólica. Não se busca mais a salvação eterna, mas a permanência estética. A ironia é que, por mais sofisticado que seja o romance, ele será consumido, sublinhado, comentado, abandonado — e esquecido, como tudo o mais.

Há, no entanto, algo deliciosamente humano nessa tentativa de alcançar o universal pela minúcia do detalhe. O autor, de posse de suas memórias (traumas de infância ou tardes de domingo), acredita poder tocar o outro — o leitor — de maneira profunda e duradoura. E, às vezes, consegue. O milagre da empatia, essa aberração da evolução, permite que uma história escrita num quarto escuro em Lisboa encontre eco num metrô lotado em Tóquio. Isso não prova, como alguns diriam, a grandiosidade da literatura. Prova, antes, a profunda e patética necessidade humana de se reconhecer no outro — mesmo que esse outro seja um fantasma inventado por palavras.

Os literatos falam da forma como quem fala de uma liturgia. Tudo deve ser medido, calculado, ritmado. O silêncio é recurso. A pausa, um gesto de inteligência narrativa. O cenário, um personagem adicional. Chega a ser adorável a maneira como transformam o ato de escrever num ritual sagrado — ainda que a cerimônia não salve ninguém, nem mesmo o autor. Mas quem sou eu para rir disso? Eu, que observo o mundo com um ceticismo tão inflexível quanto estéreo, não posso deixar de admirar essas pequenas mentiras que nos impedem de enlouquecer.

No fim, o que chamamos de “boa literatura” talvez não seja senão o mais elaborado dos desabafos. Um desabafo que se envergonha de si mesmo, e que, para disfarçar a vergonha, se veste com as roupas da técnica. O leitor, cúmplice nesse teatro, finge acreditar que há ali mais do que um ego falando — e, ao fazê-lo, sente-se tocado, engrandecido, transformado. Tudo isso é encantador. E absolutamente ilusório.

E, no entanto, funciona. Como funcionam as religiões, os sistemas morais, os ritos de passagem. A boa literatura, assim como o bom mito, cria a sensação de que há sentido onde só há fluxo. Molda, como foi dito, quem a recebe. Mas molda para quê? Para suportar um pouco melhor a próxima perda? Para tornar suportável o silêncio das estrelas?

Talvez. Ou talvez apenas para adiar, mais uma vez, o confronto com o nada. E, se for esse o caso, bendita seja a forma.

Postar um comentário

José Fagner. Theme by STS.