Recebi hoje, enquanto falava ao telefone, uma notícia que atravessou a banalidade da tarde: uma cantora brasileira chamada Preta Gil morreu. Li isso numa coluna de fofoca, o tipo de publicação onde vidas são exibidas como se fossem séries ruins, e mortes, clímax de temporada. A reação ao meu redor foi a mesma de sempre: espanto teatral, perguntas inúteis, como se repetir “morreu?” pudesse suspender o fato. Ligamos a TV. Nenhum sinal. Em vez disso, as imagens que ocupam todos os noticiários: ruínas na Ucrânia, refugiados anônimos, mais cadáveres sem nome do que qualquer um pode suportar lembrar.
Quando, enfim, a notícia foi confirmada, seguiu-se a liturgia moderna do luto público. Imagens de arquivo, depoimentos comovidos, resumos biográficos embalados como se fossem a defesa final de uma vida diante de algum tribunal cósmico que, claro, não existe. Eu, que nunca ouvi uma música sua, senti uma comoção silenciosa. Não por ela, mas pela lembrança inevitável de que todos — os que amamos, os que odiamos e nós mesmos — estamos à espera da mesma sentença.
A cultura moderna gosta de fingir que a morte é um acidente, um erro a ser corrigido pela medicina ou pela memória digital. Criamos uma indústria inteira para maquiar a decomposição, transformando corpos em homenagens e vidas em perfis a serem mantidos ativos. Mas nenhuma quantidade de homenagens pode alterar o que sempre foi óbvio: morrer não é o que nos faz especiais, mas o que nos torna comuns.
Ainda assim, essa lembrança, longe de me paralisar, traz uma estranha liberdade. O que torna a vida suportável não é a fantasia de transcendência, mas o oposto: saber que nada, nem a fama, nem a virtude, nem a inocência, sobrevive ao veredicto biológico. Isso nos liberta das ilusões que nos escravizam — a busca por sentido eterno, por justiça universal, por algum registro definitivo de que estivemos aqui.
A morte, ao contrário do que imaginamos, não rouba nada. Ela apenas encerra o empréstimo. O que tivemos foi sempre provisório. E, por isso mesmo, tudo — um riso, um toque, uma tarde qualquer — carrega um peso que não precisa de eternidade para valer.
Talvez seja esse o único consolo realista que a morte oferece: lembrar que, enquanto respiramos, cada momento já é completo em si. Não há futuro a ser conquistado, nem legado a ser assegurado, apenas a oportunidade de viver com a mesma insolência tranquila daqueles que sabem que não devem nada ao amanhã.
Preta Gil morreu. Em breve, todos nós também. E, longe de ser uma tragédia, isso é o que torna cada instante menos vazio. Porque, se tudo acaba, a vida deixa de ser uma espera e volta a ser o que deveria ter sido desde o início: um acontecimento breve, mas inteiro.
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