A modernidade ensinou-nos a duvidar das coisas. Confiamos no discurso, desconfiamos do silêncio; valorizamos o gesto grandioso, desprezamos a repetição modesta. Contudo, a verdade — se ainda é lícito usar essa palavra — raramente se revela no que é barulhento. Ela habita o que não se anuncia. E nisso, talvez, os objetos tenham nos compreendido melhor do que nós mesmos.
Uma xícara com a borda lascada pode carregar mais humanidade do que um romance inteiro de frases bem compostas. Nela está depositada a memória — não apenas como lembrança, mas como forma de vida sedimentada. É o que Nietzsche poderia ter chamado de um hábito da alma. Em seu uso diário, sem exaltação nem fanfarra, revela-se o que resta da autenticidade num mundo entregue à encenação.
A crítica ao sentimentalismo barato — ou pornografia emocional — não é uma recusa da emoção. É, antes, o reconhecimento de que o afeto genuíno exige tempo, hesitação, ambiguidade. Ao contrário da catarse instantânea prometida pela cultura de massas, a emoção verdadeira é desconfortável. Ela não se presta ao espetáculo porque não é redutível à fórmula. Ela exige a coragem do não dito.
A cultura contemporânea, porém, vive sob o império da transparência afetiva. A literatura, a música, o cinema — tudo parece concebido para produzir uma reação previsível, como se o valor de uma obra se medisse pela intensidade da lágrima que provoca. O que se perde nesse processo é o próprio espaço interior, onde a emoção se elabora de forma não-linear, onde o silêncio também é fala.
Talvez essa ânsia por comoção tenha origem no vazio de sentido. Um mundo desprovido de transcendência precisa dramatizar a imanência. Mas a tentativa de substituir o sagrado pela emoção produz apenas uma paródia do sagrado — algo que emociona sem transformar. A pornografia emocional é, nesse sentido, um sintoma de desespero espiritual.
Há, porém, uma resistência silenciosa. Está nos escritores que recusam o excesso. Em Tchekhov, o silêncio vale mais que a lágrima. Em Thomas Mann, a emoção infiltra-se como o vento sob a porta — imperceptível, mas real. Em ambos, há uma aposta no detalhe como portador de verdade. A colher no prato, o gesto repetido, a pausa entre duas palavras — são aí que se esconde o que a linguagem não pode dizer.
Isso nos obriga a repensar o próprio ato de escrever. Escrever não é manipular emoções. É oferecer um espaço onde elas possam acontecer. O bom escritor não se impõe como maestro de um concerto emotivo; ele se retira, como um anfitrião discreto, e deixa que o leitor descubra sozinho o que há de verdadeiro numa cena comum.
Essa retirada exige uma forma de humildade que é rara num tempo em que o narcisismo se tornou virtude. Exige também uma visão trágica da vida: o reconhecimento de que há dores que não se resolvem, afetos que se contradizem, momentos que passam sem redenção. E, sobretudo, exige a disposição de confiar no pequeno. Pois é no pequeno — nas xícaras, nos silêncios, nos gestos esquecidos — que o real se manifesta.
Ao fim, talvez reste apenas isso: uma recusa ativa à encenação. Não como gesto de pureza moral, mas como forma de resistência ontológica. Num mundo saturado de emoção performática, a contenção torna-se subversiva. E uma xícara lascada pode ser, sem exagero, o último reduto do humano.
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